Amber Heard, a violência contra mulher e por que temos dificuldade em ouvir certas vozes.

Dia 7 de dezembro de 2017
|

Esse post é um convite, você não precisa aceita-lo se não quiser. Mas se não estiver disposto a sequer considerar mudar o curso da sua viagem eu peço que desembarque agora. Porque eu estou farta, sim, mas essa aqui ainda é uma tentativa. Porque há certas coisas a respeito das quais nunca devemos nos calar.

Você deve ter visto nos jornais, lido no facebook, acompanhado os topic trends no twitter ou ouvido falar no grupo da turma. Se você é um potterhead e cresceu fazendo amizades em filas com desconhecidos e sendo ensinado a dividir as conquistas – as lutas e os medos – com os seus amigos você, bem como eu, chorou de felicidade quando soube que J.K.Rowling, a própria rainha da nossa infância, estava escrevendo um roteiro para os cinemas com a intenção de revisitar e remodelar o mundo mágico.

E então você soube que o velho capitão Jack Sparrow estaria nele e você também vibrou com isso. Porque, certo, sabemos que Johnny Depp está sempre se fantasiando e se mascarando debaixo dos personagens. Mas enxergar isso também não significa que não tenhamos dado umas boas risadas com ele e o Pérola Negra, também está longe de querer dizer que ele não tenha feito um trabalho excelente em Edward Mãos de Tesoura, e que, apesar das opiniões divergentes, ele não possa ser um bom ator – talvez seja um ator bem melhor do que qualquer um de nós sequer pensou que ele pudesse ser.

Mas ai você viu, em Maio passado, que Amber Heard a então esposa de Depp havia pedido divórcio, preenchido uma solicitação para que ele fosse legalmente impedido de chegar perto dela (através de uma ordem de restrição), e entregado vídeos, fotos, mensagens de textos e um olho bem roxo como prova de que seu esposo estava batendo nela e sendo violento dentro de casa. Pode ser que você até tenha chegado a pensar que essa oportunista de uma figa estava tentando jogar o nome do seu querido ator para debaixo do ônibus, porque, afinal, ela deve estar querendo uns 15 minutos de fama. Aliás, quem ela pensa que é para acusar alguém de violência doméstica quando ela mesma foi presa por maltratar a ex-namorada em 2009?

Esse post é um convite, porque vocês precisam parar para pensar sobre o que a história de uma pessoa significa. E como é errado usa-la para diminuir a pessoa quando você não está disposto a ouvir o lado dela, mas aceita qualquer coisa que joguem pra você como a verdade universal.

É perigoso quando pessoas em posições de poder começam a repetir discursos engessados por termos e contratos. É vergonhoso que uma mulher como J.K.Rowling libere uma nota em seu site oficial dizendo que se sente triste por não ser livre para falar abertamente com seus fãs sobre o caso, e que não devemos emitir parecer sobre o que acontece entre duas pessoas. É vergonhoso porque não apenas sabemos que J.K.Rowling superou um marido agressor – não sozinha! – o que idealmente significaria que ela se posicionaria contra ter um homem violento ganhando rios de dinheiro e fama sob seus holofotes, como também sabemos que é muito possível recomeçar projetos e re-escalar atores e atrizes novos para personagens. Foi o que fizeram quando os abusos de Kevin Spacey foram trazidos à tona.

Christopher Plummer foi tomar o lugar de Spacey em um filme que já estava com as filmagens encerradas. A NBC demitiu o Matt Lauer, um de seus apresentadores mais bem pagos, por conta de uma acusação que levou à uma investigação sobre ele. Até mesmo o Senador Al Franken, nos Estados Unidos, está enfrentando uma processo investigativo por conta de um abuso que cometeu dez anos atrás quando ainda era comediante.

Em grandes partes a pergunta não é se podiam ou não terem demitido o Johnny Depp e escalado um outro ator. A maior pergunta que precisa ser feita aqui é por que não quiseram?

É um fato que quando homens são acusados de violência contra uma mulher algumas mulheres em sua vida aparecem para defende-lo e dizer que ele nunca foi inapropriado, como foi o caso da outra ex-mulher de Johnny Depp, Vanessa Paradis, dar depoimentos dizendo que ele nunca abusou – como se isso fosse suficiente para indicar que ele não poderia ter feito diferente com qualquer outra pessoa.

Sim, acredito em padrões de comportamento. Mas também acredito que para uma coisa acontecer basta que ela comece a acontecer. Não há um único homem sobre a face da Terra que tenha nascido abusador, estuprador ou violento. As pessoas se tornam quem elas são, o problema maior que se fala aqui, o convite que faço, é para que tentem parar com o endeusamento agudo dos seres humanos como se eles não fossem passíveis de erro. As pessoas são corrompíveis.

“Eu te venero”, “Minha deusa”, “Rainha soberana”, entre os outros termos que se popularizaram não são uma demonstração de carinho. São um redirecionamento do que é perfeito e sagrado para lugares onde o perfeito e sagrado não podem estar. Johnny Depp é apenas um homem, J.K.Rowling é apenas uma mulher e não importa quanto carinho tenhamos por eles, quão importante estejamos apegados na memória afetiva, o quanto tenhamos rido ou chorado pelo prazer de suas companhias: ambos podem, e vão, errar.

O que me incomoda aqui não chega nem a ser a violência em si, eu acho. O que me incomoda aqui é o silêncio. Johnny Depp poderia estar pagando pelo que fez, poderia até seguir sua carreira no futuro. Mas o que ensinamos aos homens quando dizemos que podem estar acima da lei? O que ensinamos às mulheres quando dizemos que serão acusadas de loucura ou puro interesse financeiro ao denunciar alguém?

Eu não escrevo esse post como quem diz que a violência não existe, ou acredita que ela não vai existir. Eu escrevo esse post como alguém que acredita que fingir que ela não está aqui perpetua sua existência na vida de centenas de milhares de mulheres que jamais vão se sentir confortáveis para falar sobre o que passaram porque sabem que vão perder emprego, serem vistas como histéricas, loucas ou exageradas que entenderam errado. Veja, não foi isso que ele quis dizer!

Quando um homem acusou Amber Heard de bater em sua ex namorada num aeroporto, em plena vista de todo mundo que viu aquilo não estava acontecendo, a própria ex namorada, Tasya van Ree precisa dizer que não foi aquilo que aconteceu e tira-la da cadeia (informando no ano passado que é um absurdo que essa história infundada prejudique o julgamento das pessoas sobre Amber, que jamais a agrediu). Mas quando a própria mulher acusa um homem de bater nela, mostra os vídeos, os exames médicos, as mensagens e as fotos do que aconteceu, certamente não podemos confiar nela, porque esse homem não tem um histórico de violência.

Quando um homem abusa de outro homem ele é demitido, tem sua carreira destruída e não importa quão bom profissional ele seja, não estamos dispostos a trabalhar com ele ou apreciar sua fabulosa atuação. Mas quando um homem abusa de uma mulher devemos lamentar a falta de liberdade para falar sobre isso e exaltar sua presença numa franquia que ensinou todas as pessoas em pelo menos duas gerações a se posicionar contra o que é errado, independente de quão difícil pareça fazer a coisa certa?

Nós jamais saberemos como Amber Heard conseguiu aquele olho roxo. Não estou aqui para julgar o que aconteceu ou deixou de acontecer. Em momento algum eu militei à favor de Amber como se absolutamente cada palavra que ela disse fosse verdade. Mas por que parece tão fácil aceitar que tudo é uma mentira? Porque veneramos os homens como se estivessem acima da verdade e da justiça e aceitar que sejam capazes de maldades destruiria todo um imaginário que não passa disso – um imaginário.

Ontem eu li um depoimento incrível de uma mulher que foi abusada quando criança e disse que isso não mudou sua vida. Que ela conseguiu seguir, que ela foi feliz, que ela mal lembra do acontecido. No texto ela dizia que entendia que as coisas tinham sido assim para ela porque no exato momento em que ela delatou seu abusador, no auge de seus oito anos de idade quando ele era um adulto, sua família inteira acreditou nela e tomou as devidas providências. Ninguém achou que era uma invenção infantil, ninguém disse que a culpa era dela por ir brincar no parquinho, ninguém disse que devia ser uma brincadeira e que ela tinha entendido errado.

O que me incomoda aqui é o silêncio porque o que acontece quando calamos uma mulher e ignoramos o seu pedido de ajuda, é que o seu abusador se torna mais potente, maior, mais seguro, mais corajoso de continuar tentando obter poder às custas da humilhação alheia, porque ele sabe que vai sair impune. Não podemos combater um mal que não existe, e se achamos que ele é grande demais, por que não simplesmente ignora-lo?

Quais são as vozes que ressoam mais alto sobre a multidão, e por que elas tapam gritos agudos e desesperados com as mãos? O silêncio é a própria violência. Uma pessoa sem voz é uma pessoa apagada do seu direito de contar sua própria história, do direito de fazer História.

Não acho que absolutamente todas as mulheres que já acusaram um homem de abuso sejam pessoas 100% íntegras e sinceras, porque eu tenho a minha cabeça no lugar e não venero corpos de carne e osso. Mas não parece errado presumir que 100% delas esteja mentindo? Que é errado destruir a carreira de um homem assim? Que pode até ser que ele tenha feito o que dizem que fez, mas não estamos interessados na vida pessoal dele e sim em quão bem ele faz seu trabalho?

Espere… O QUÊ?

Vocês permitiriam que um pedófilo fosse professor por que ele é professor excelente? Vocês permitiriam que um assassino fosse médico porque ele opera tão bem? Por que quando se trata das violências contra a mulher tratamos de colocar todas as outras opções acima da simples possibilidade de que talvez seja necessário investigar o caso pois pode ser que seja verdade?

Há de esperar que se entenda tudo o que não é dito à partir do que é dito. Quando uma escritora diz “vou dizer tudo que posso sobre o caso de Depp no elenco” entendam que há algo que não se pode dizer, que não é dito. Quando se diz que “a incapacidade de falar abertamente sobre isso com os fãs tem sido difícil, frustrante e por vezes dolorosa” não justifica a tentativa desesperada que milhares de pessoas fazem diariamente em se comunicarem com J.K.Rowling e são bloqueados. Os contratos podem ser desfeitos, os atores podem ser escalados novamente, eu não sei se os abusadores serão presos, mas eles devem sim ser investigados.

Os Crimes de Grindewald só vamos descobrir no ano que vem, mas os crimes de quem tem voz e a usa para apagar o pequeno suspiro de esperança dos que não tem eu convido agora para que olhem mais de perto. Ouvi dizer por muito tempo que eventualmente chega o momento de decidir entre o que é fácil e o que é certo. Pra falar a verdade, hoje eu não sei mais quem disse isso, mas gosto de pensar que quem quer que tenha sido, teria me incentivado a olhar um pouco mais de perto ao invés de acreditar cegamente na primeira história que foi repetida, recontada, aumentada – ou pior, recortada – para se perpetuar como verdade.

  • Caio Borrillo
    dia 9 de dezembro de 2017

    Lembrando que Depp destruiu um quarto de hotel depois de discutir com sua namorada na época, Kate Moss. Imagina o que Kate não deve ter visto esse sujeito fazer?

  • dia 14 de dezembro de 2017

    Eu não sei nem por onde começar, que texto maravilhoso, obrigada por ele! Me faço todos esses questionamentos o tempo todo, porque é tão difícil pras pessoas aceitarem que seus “ídolos” podem não ser a pessoa tão maravilhosa que eles esperam que eles sejam, mas porque tão fácil acreditar que uma mulher está mentindo para obter fama, como se Amber precisasse de verdade disso. Como se fosse fácil para mulheres denunciar casos do tipo, pois, afinal, ela sempre será questionada mil vezes, terá dedos apontados à sua face para lhe chamar de oportunista e coisas piores, sua carreira será jogada no lixo, enquanto a do acusado ganhará mais e mais combustível. As pessoas estão cegas por seu, como você disse, imaginário da pessoa perfeita, as pessoas incapazes de cometer um erro sequer. É triste, e não sei se isso um dia vai acabar =//

    Beijos, e mais uma vez, obrigada por esse texto.