carta de número um

Dia 4 de maio de 2017
|
Sobre Textos

 

Querida,

Já devem ter te falado que você vai se esquecer dele, certo? Que o tempo vai passar e você vai esquece-lo e você vai ficar bem, mas, o que, de fato, significa esquecer alguém? Esquecer alguém é não lembrar dos domingos regados à pamonha? Dos banhos de chuva e risadas? Das surras de cócegas e todos os beijos com gosto de café? Se esquecer alguém significar não lembrar mais do cheiro do perfume ao passar por um estranho na rua, e já não mais virar o rosto eu diria que não, não sei como funciona esse negócio de esquecer.

Como se esquece dessas coisas? Como se esquece do exato peso do corpo de alguém sobre o seu? Como se esquece da pontada no peito que alguém te causa porque te deixa tão sem ar que você não se lembra de ser capaz de respirar direito, ou emitir sons corretamente? Como você se esquece de alguém que sempre foi o seu futuro, mas não está mais no seu presente e preenche cada espaço em branco do que a sua memória classifica como passado? Como se vê origamis apenas como origamis?

Você é capaz?

Você é capaz de passar por alguém na rua com o mesmo perfume de uma pessoa que preencheu cada parte do seu ser e sequer virar o pescoço pra olhar de novo? Algumas pessoas são, pois passam por pessoas e pessoas diariamente sem nunca serem capazes de distinguir a fragrância.

A minha era limão com capim e cassis de fundo amadeirado, mas eu não acho que ele jamais teria se lembrado, meu bem. Não só porque esse era o perfume e eu misturava muito com o creme de lavanda e o sabonete de erva-doce criando uma combinação atípica, mas porque eu já não imagino que ele era assim tão especialista em ler meus detalhes como você me dizia que era.

Não sei se eu tenho a resposta para qualquer uma das perguntas que as pessoas me fazem sobre esquecimento. Mas, sendo sincera, a resposta certa para a pergunta errada pode não significar muita coisa porque a gente não devia estar falando sobre a eficiência da memória aqui.

Todas as perguntas erradas se resumem numa única resposta certa: você pode amar alguém e não pertencer a ela – ou ela a você. Pois o que, de fato, significa, ser de alguém? Por toda a vida nos ensinaram que éramos dos outros. Irmãos de alguém, filhos de alguém, netos de alguém, amigos de alguém, namorados de alguém. Mas não é apenas possível – é necessário – que sejamos nossos. Portanto, não estar romanticamente envolvido com alguém não significa que você precise amar essa pessoa nenhum pouco a menos, e não significa que vá – por vezes você vai amar mais.

A libertação do amor não é quando o amor acaba, ou quando a convivência acaba, ou quando um deixa de estar na vida do outro, ou quando um vai pra outro país e o outro fica, ou qualquer outra coisa que signifique afastamento, isolamento ou perda de contato. Em realidade a maioria das pessoas é capaz de conviver muito com uma pessoa e ainda assim não amá-la ou conhecê-la, entende, meu bem?. Estar junto não significa, de fato, estar feliz. Ou livre, ou amando.

A libertação do amor é quando você sabe que pode amar uma pessoa mesmo que ela não te recompense por isso e você sabe que tudo bem. É quando você sente um perfume na rua e se vira para olhar e isso te faz sorrir, porque você sabe que em algum lugar no mundo alguém que você ama está usando aquele perfume, e você deseja apenas que essa pessoa esteja bem. É quando você não sente que precisa mudar a pessoa para transforma-la no que você precisa que ela seja – magra ou gorda, morena ou ruiva, escritora ou professora, atleta ou cientista, casado ou solteiro, morador de uma cidade ou de outra – porque você vai amá-la independente de qualquer coisa que ela venha a se tornar, por qualquer coisa que ela seja.

Eu vejo muito, o tempo todo, o amor ser associado com reciprocidade. Mas o amor não necessariamente vai ser recíproco, porque ele não é uma recompensa. Não se ama alguém porque ela te ama de volta ou não, se ama alguém apesar disso. O mundo das pessoas vai continuar girando esteja você neles ou não, por isso você pode se libertar de qualquer pergunta que signifique que a outra pessoa precisa, de alguma forma, lembrar do seu amor. E se o amor não consiste em lembrar a falta dele certamente não é esquecer.  O amor não vem, necessariamente, por meio de uma palavra, um beijo ou abraço. Ele é como uma energia que se envia alguém, e não se pode enviar apenas no caso de essa pessoa te enviar também. Falta de reciprocidade não significa, por si só, relacionamento abusivo ou sofrimento.

Você entende um pouco com o tempo, meu bem, que amar alguém não te torna proprietário dela, de modo que ela é livre para fazer o que bem entender com esse amor.

Esquecer a pessoa é esquecer como os cílios dela pode ser longo ou curto, como ela te fazia rir com piadas bobas ou te fazia sorrir com uma pamonha no fim da tarde de domingo. Você nem sempre vai esquecer alguém só porque a pessoa não está mais por ai, mas a boa notícia é que da pra ser livre de alguém sem necessariamente esquecer essa pessoa, entendendo que ela nunca te pertenceu, pra começo de conversa. Pode-se estar livre de alguém junto ou separado, perto ou longe, aqui ou lá.

O amor não é sobre lembrar, é sobre libertar.

Alguns perfumes vão te deixar refém para sempre. Alguns lugares nunca vão entender pra onde foi o amor e porque ele e eu  não vamos mais lá. Algumas árvores vão crescer mais fortes sem a gente pra subir nelas, e algumas flores nunca mais serão regadas e isso não as fará morrer. Há esquinas pelas quais nossas mãos dadas jamais passarão novamente, e garçons de quem nunca nos despedimos. Alguns dias de chuva não serão como eram antes, e não é esquecendo isso que você vai se libertar, sabe, meu bem? Mas se libertando você talvez seja capaz de esquecer.

A cura não é sobre esquecer, é sobre libertar-se. Não só de tudo que foi, mas – e especialmente – de tudo que poderia ter sido.

E se você me perguntasse eu diria que a libertação vem de várias formas. Eu ainda não consigo beber achocolatado em copos sem me lembrar da sensação gostosa do alumínio gelado nas minhas mãos. Mas hoje é quarta-feira e eu comi uma pamonha muito boa. Você pode descobrir o que funciona melhor pra você, e, se não souber por onde começar, vá e molhe seu rosto na chuva. Nem todas as fragrâncias vêm de flores reais e plantadas, mas até mesmo os jardins de papel precisam de novos motivos para continuarem existindo.

Vá, molhe seu rosto na chuva. Você pode até estar molhando sozinha, mas isso não significa que não vai estar sendo amada.

 

com todo o amor de mundo,

e um respingo de chuva

M.

_______________________________