carta de número zero

Dia 18 de março de 2017
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Sobre Textos

Querido,

É bem verdade o que nos disseram.

O tempo realmente cura, sabe? O tempo permite que o pijama no guarda-roupa perca um pouco do cheiro, e que o sorvete da esquina se misture às milhares de sorveterias que só vendem sorvetes ao invés de um combo de banana split com sorvete sensação – ah, os floquinhos de chocolate! – e beijos doces. O tempo propicia à árvore que se fortaleça ali nos lugares onde dedos recém entrelaçados um dia rasparam suas iniciais. É também o tempo que preenche os domingos preguiçosos com uma porção de açúcar aonde deveria haver um segundo lugar ocupado no sofá, para um segundo controle do vídeo-game sem parecer que o segundo lugar ou o segundo controle devessem estar ali.

É como disseram, eu sei.

Que o tempo passa e a gente se distancia das pessoas que éramos quando nos apaixonamos. É bem verdade, eu sei. É bem verdade que não vamos morrer ou ser infelizes, ou sorrir menos porque não estamos juntos. Não sei se está feliz, mas espero que esteja e isso não significa que precisa – ou que deve, ou que vai – ser ao meu lado. E, tudo bem, sabe?. Porque ninguém disse isso, mas eu descobri que vamos amar pessoas diferentes, com intensidades diferentes e em momentos diferentes por causa de quem somos quando estamos com elas – e por causa de quem precisamos ser aqui e ali ao longo do tempo.

E não vai ser mais ou menos amor. Mas foi também o tempo que esfregou na minha cara que é possível ser diferente e ainda assim ser amor. Ser muito amor. Ser amor pra caralho.

Não gostaria que você achasse que escrevo qualquer uma dessas palavras com algum arrependimento por tudo que vivemos, ou – e, principalmente – arrependimento por ter partido, pois há muito sentimento aqui, mas, arrependimento não é um deles. E como a gente chama um arrependimento que não chega a ser do que foi, mas de tudo que haveria de ser? Esse foge um pouco do meu controle, você sabe, eu sempre tive a imaginação um pouco fértil.

O tempo, que vagaroso vai passando e ao pôr-do-sol corre mais depressa, insiste em nos mostrar que ele vai levar todas as coisas até que, uma a uma, elas tenham nos dito adeus por completo, e, mesmo ele – que é eterno – vai embora quando morremos. E pensei sobre isso, sabe, meu bem? Pensei sobre como a morte é, na verdade, quando o tempo de alguma coisa chega ao fim.

O que significa que a morte no relacionamento não significa a morte do amor. E às vezes me ocorre, que poderia ter tentado, que não estávamos prontos e que mesmo o amor não pode escapar do remédio – que é o tempo. Mas é quando o tempo passa rápido e o pôr-do-sol devagar que todas as respostas clareiam a noite feito céu estrelado. Nunca estaríamos prontos. Ninguém está pronto para o amor. Ninguém se prepara para ele. Ninguém pode compreendê-lo. Ninguém pode explicá-lo.

Não estávamos prontos, não poderíamos ter estado. Não há simulação para a prova do amor, não há gabarito com resposta certa. Há, sim, algumas reprovações e acertos. Mas não há remédio – mesmo o tempo – para curar o que não é um mal da alma. O amor é bem do coração. No fim das contas talvez o amor não tenha curado o meu amor porque ele só pode dar fim ao que é efêmero. E posso até morrer um dia, mas o meu amor..

Talvez signifique que embora alguns amores não morram, a morte do fim é quando seu tempo acaba. E só posso concluir com isso que depois dele vem um novo.

Recomeço.

Haveriam de ter nos dito, meu bem, que o tempo só pode consertar o que está quebrado, e de inteira que me tornei acabei tropeçando na verdade de que cabe mais do que um amor eterno em seres humanos assim tão complexos como nós. Poucas pessoas acham uma caixa só o suficiente para guardar memórias especiais, a maioria transborda pelas bordas e se espalha universo afora. Como se as memórias fossem o próprio amor, desacelerando até o mais rápido dos pôres-do-sol – que transformam um céu azul em laranjado logo antes de ele brilhar na noite escura.

Faithfully yours,

M

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