eu ainda não cheguei lá, mas eu cheguei aqui

Dia 20 de junho de 2018
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Sobre Textos, Viagem

Tem quatro meses que eu furei minha orelha. Tenho o primeiro furo desde que eu nasci, ai fiz o segundo e o terceiro furo nas duas orelhas quatro meses atrás. Depois de uma semana tirei os brincos para limpar e o terceiro furo da orelha direita fechou nos dois minutos que me levou pra lavar o brinco com água boricada. Hoje eu tenho três furos de um lado e dois do outro, hahaha, foi muito divertido.

Na hora do furo, apesar de ser rápido, senti uma dor que não esperava. Todo mundo me falou que seria tão rápido que eu nem sentiria, mas eu senti, e ai me assustei porque ninguém me disse que eu sentiria isso. É confuso, sabe, sentir coisas que as pessoas não te disseram que você iria sentir. Mas eu sabia que ia doer depois, até a cicatrização.

Eu não sei como você chegou até aqui, porquê você chegou até aqui ou em que estado você chegou; o que te trouxe. Mas eu estou feliz por você estar aqui agora, porque nesse momento compartilhamos o mesmo espaço, e é importante que cada coisa tenha seu lugar.

Quando eu comecei o ano de 2018 eu sabia que ele seria um ano que mudaria a minha vida. Não por causa dos furos na minha orelha, mas porque eu sentia. Dentro de mim.

Mudanças chegam a nós como tempestades, com pequenas ondas reverberando à distância, de modo que quem está prestando atenção pode antecipar o que ainda não chegou. E eu senti meu coração reverberando por um tempo. Hoje eu me olho no espelho e eu vejo meus furinhos na orelha e eu sei que todas as coisas estão relacionadas.

Tem gente que não me vê há anos. Gente que me conheceu quando eu só tinha um furinho em cada orelha e ainda era alérgica demais para preenchê-los. Gente que talvez achou que já tinha visto tudo que tinha pra ver em mim, conhecido tudo que havia pra conhecer, sabido tudo que havia pra saber, rido tudo que tinha pra rir, confiado tudo que tinha pra confiar. Talvez era tudo isso mesmo o limite.

Era.

Mas isso foi antes. Antes de 2018.

Em alguns anos eu sei que eu vou olhar esse texto que agora escrevo deitada numa cama de Hostel em Nova Iorque, um texto que comecei a escrever várias vezes e não consegui terminar ainda, e eu vou pensar que no momento em que ele estava sendo escrito eu talvez não soubesse o que estava fazendo tão bem quanto saberei lá, naquele momento.

E, sabe, não ser ainda tão completa assim não me impede de ser o melhor que eu preciso agora. Porque eu sei que eu vou estar pra sempre inacabada, e absolutamente preenchida mesmo assim. Mesmo agora. Como era quando tinha só um furo na orelha. Como eu era quando as pessoas acharam que já tinham visto tudo que tinha pra ver de mim.

Mas eu nem cheguei lá ainda. Eu não tô nem perto. Eu sou só um garota de orelha furada, que pegou um trem pra um lugar, sem cama pra dormir quando chegasse lá.

Eu me mudei de país. Furei minha orelha. Fui conhecer gente que eu nem sonhei que existia. Eu chorei no meio da rua, de gratidão. Eu saí pra dar uma volta e eu ouvi gente falando três linguas diferentes, ai eu desci em seis paradas na linha 7 de metrô e eu estava na Broadway. Meus cinco furinhos na orelha e eu estávamos na Broadway.

Mas eu não cheguei lá ainda.

Eu não tô nem perto. Mas eu cheguei aqui.

E aqui… É onde tudo começa. É em mim, onde tudo começa. Porque cada coisa tem que ter seu espaço e eu sei que eu não estive presente nesse meu espaço por um tempo. Mas eu cheguei aqui agora. 2018, eu não posso acreditar que foi só a metade.

A vida é sobre dar tempo para que as coisas se encaixem nos seus lugares. Tirar o que transborda em excessos desnecessários, abandonar as correntes que algemamos em nós mesmos, vestir roupas confortáveis para ir ver o pôr do sol e comprar bilhetes pra outras cidades sem ter lugar pra passar a noite. No fim das contas pode ser qualquer ano. O que importa é como a gente se apresenta no espaço, porque nem sempre dá pra mudar de país – às vezes não dá pra mudar nem de bairro! – mas sempre dá pra mudar a gente, e a forma como vemos tudo.

Talvez você devesse começar furando a orelha, vai doer um pouco mas depois vai passar. E quando tiver passado e você olhar no espelho, só vai ver você e o que a dor te deixou (brincos lindos e reluzentes!). Porque tudo passa, mas a gente fica aqui nesse nosso espaço. Vai doer um pouco, mas depois vai passar.

(E olha que eu ainda nem cheguei lá!)

 

 

  • Cecília Maria
    dia 28 de junho de 2018

    Que texto! Eu comecei a chorar na parte do mudar de país. Porque eu senti o seu sentimento e acompanhei um pouco da sua trajetória e estou muito, muito feliz por você!!! Você merece tudo isso e muito mais. Tudo no tempo certo, no seu tempo. Aproveite cada minutinho dele. Te amo.

  • dia 29 de junho de 2018

    Ahhhh, que texto maravilhoso. Em abril desse ano eu viajei pela primeira vez sozinha, para outro país, sem falar a língua e senti tudo o que você descreveu no texto. Eu ainda não cheguei onde eu quero, mas já cheguei até aqui.

    http://larydilua.com/

  • Isaac Vaz
    dia 10 de julho de 2018

    Um Monet