eu quero te ver ter coragem

Dia 29 de março de 2020
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Sobre Textos

Na varanda, a jibóia se pendurava do alto, sustentada por um gancho dourado contra o teto branco. À luz da manhã, enquanto os olhos desinchavam e os lábios finos encontravam uma xícara de café sem açúcar recém coado, ele encarava o dia chegando enquanto receios que nem sabia que tinha, iam embora.

Da escuridão da noite anterior sobrara alguns pensamentos pairando por cima de seus cabelos, como uma auréola de incertezas. No quarto, o lençol ainda estava amassado e repuxado, um dos travesseiros jogados no chão e a cortina escondia o amanhecer que tentava clarear o ambiente e a vida de quem ali morava; não era a imagem que trazia a paz de outrora a ele, portanto se acolheu em pleno calor do sol junto ao café que o aquecia de dentro pra fora.

Gostava de dizer que aquela rotina de isolamento lhe parecia apenas o que deveria ser, como sempre fora. Acordar sem dar bom dia a alguém e passar seu café ao som de um jazz nas manhãs enquanto os pés deslizavam pelo chão da cozinha. Mas já não sabia mais se era.

Há algumas semanas começara a acordar dentro dele um desejo de encher uma segunda xícara de café, de amassar o lençol por outro motivo, de abraçar a cintura dela enquanto ambos seus pés deslizassem pelo chão da cozinha.

Mesmo alguém tão confiante como ele se surpreendera na forma ousada que ela encontrara de sorrir a ele. A forma que encontrara de estar presente em seus dias mesmo quando não estava; de olhar detalhes e ouvir canções e senti-la ali ao seu lado. Ele sabia o que cresceria dentro dele se permitisse. Sabia quão alto o balãozinho em seu coração voaria se continuasse a enche-lo; sabia quanta dedicação e amor tinha dentro de si para se permitir construir coisas; criar do zero o que não existia.

A ilusão de estar habituado ao isolamento se quebrara. Em seus dias sempre tão cheios quase nunca descobria pessoas capazes de desvendar suas camadas interiores. Ninguém como ela; sutil e bagunçada, evidente como o gancho dourado da sacada que se fazia visível contra o teto branco, sem o qual a jibóia não poderia se pendurar naquele cantinho em que o sol não alcançava, mas sua luz sim. É sempre tão curioso o que enche a nossa vida de vida, frequentemente só notamos o quanto ela estava morta quando fôlego é soprado sobre nós. As folhas da jibóia se se encarregavam de colorir o seu ambiente outrora cinza, tanto quanto o riso dela.

São tantos os cantos e esquinas do coração que o amor não alcança, mas sua luz sim, colorindo ambientes outrora cinza.

O café era forte, sem nenhum açúcar, como ela gostava; como ela. O quarto ainda estava bagunçado, e a cortina fechada; como ele. Em todos os outros espaços a luz encontrava brechas de entrar; como na vida. O isolamento não parecia tão real quando não se havia outra escolha. Agora ele se sentia compelido a tê-la ali, como uma criança que passa toda a vida dizendo que não gosta de cenouras, até descobrir como os bolos de cenoura são feitos. Mesmo aqueles cheios de dedicação e amor dentro de si, que se permitem criar coisas que não existem, partem de algum lugar para criá-las.

Ela era – ele sabia – a matéria prima da criação de tantos sentimentos que ferviam dentro dele, prestes a serem incontidos. Sabia o que ela diria se estivesse ali; primeiro escolheria o jazz certo ou alguma outra música que ele possivelmente nunca ouvira antes, depois… bem, depois diria a ele aquilo de sempre, aquilo que agora em sua ausência a presença de sua voz se fazia ouvir.

Eu quero te ver ter coragem.

Encheu a xícara mais uma vez e respirou fundo. Por Deus! Como amava o café amargo, como ela.