foi no sábado de manhã que ele me amou

Dia 15 de março de 2020
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Sobre Textos
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Vai ser difícil aceitar que essa aqui, nas nove – dez, onze, doze – palavras que tem, já é uma carta de amor. Eu disse que não trataria das palavras assim. Me forcei a crer que talvez o amor fosse bobo demais pra me gastar letras e vírgulas em tentativas de explicá-lo. A construção dessa crença foi feita com cautela e por anos.

Digo me forcei a crer porque não é uma coisa que teria vindo a mim naturalmente. Já fui daquele tipo de pessoa que realmente acredita. Que simplesmente sabe, que sente e confia que o sentimento que revira as entranhas por dentro e faz o estômago virar de cabeça pra baixo como queda livre da montanha russa, é o que eu deveria sentir quando as mãos quentes dele tocam as minhas e isso é apenas o que deveria ser e não nada que precise significar algo ou sequer ser algo; já é.

Foi no sábado que ele me amou. Antes do amanhecer apontar seus primeiros raios, algumas mentiras que eu contei a mim mesma já tinham deixado de existir.

Eu quis mudar. Eu quis dizer pra mim que aquela fora a última carta de amor e não haveriam outras depois dela, mas isso foi antes de eu chegar nos lugares e saber se ele passara ali ou não, pelo rastro do perfume deixado no ar. Pensei que se eu pudesse pedir alguma coisa a alguém nunca seria isso; que ele ficasse, e se essa não fosse uma carta de amor talvez eu tivesse mesmo pedido alguma coisa diferente, mas como eu vou saber se no fim desde o início acabou sendo?

E quando eu percebi que queria mudar, que queria mesmo, me levou poucos meses. Meses pra entender a força das mentiras que contei a mim mesma por anos e como elas determinaram minhas decisões, escolhas de vida e jornadas que optei por trilhar. Mas nem isso foi assim tão difícil de aceitar quanto que meu coração era capaz de amar. A própria rainha do gelo derretida no asfalto.

Então no domingo entendi, quando ele sorriu pra mim no meio de toda aquela gente, que eu teria entregado de livre vontade a ele a chave dos muitos cadeados que protegiam meu coração mesmo que isso significasse estar vulnerável e jogar a precaução pros ares.

Pra onde foi a cautela com a qual envolvi esse órgão, meticulosamente protegido com camadas de plástico bolha de sentimentos? O que aconteceu, em poucas semanas, com a garota que media seus passos, traçava seu destino, escolhia seu próprio caminho?

O amor em nós cria novas estradas, e é impossível não andar por elas porque há calor e sol por onde ele passa. Não há um único caminho, atalho, trilha, serra ou caverna intocada pelo amor em nossas vidas; ele se desdobra para tocar, mesmo que indiretamente, nossas partes mais escondidas, as mais cuidadosamente guardadas e protegidas e as abraça de modo a nos fazer questionar como achamos que nossos devaneios individualistas poderiam nos cercar de vida outra vez.

Na segunda-feira eu olhei pra ele por cima da xícara de café, e sorri comigo mesma antes que ele soubesse que eu reparara na camiseta nova que ele usou. Terça-feira eu já não teria dormido sem lhe dar boa noite. Mas ainda parecia caber a mim mesma a ideia de que eu cairia fora assim que quisesse e me protegeria com cuidado ao menor sinal de perigo.

Aquelas mentiras que disse que eu acreditei por alguns anos. Você está sequer prestando atenção ou algo do tipo?

Quarta-feira não falei com ele e fiquei de mau-humor. Na quinta-feira eu gostaria de tê-lo abraçado, mas não tive chances, e não sentir o seu perfume uma vez mais, fez com que eu não dormisse muito bem. Na sexta-feira eu dancei sozinha enquanto bebia uma cerveja, comi sushi e escrevi essa carta de amor, mas as estrelas continuaram penduradas no céu e eu não me deitei pra vê-las.

Algumas semanas, poucos meses. E, assim bem rápido, antes que eu reparasse – menos rápido do que alguém teria previsto, mais demorado do que toda a vida que vivi antes dele – rápido o suficiente pra que me passasse despercebido entre as rotinas dos dias. Aconteceu.

E, tudo bem, você sabe, talvez eu nem tivesse falado sobre isso. Não é sensato, não soa prudente ou inteligente. Não é o tipo de coisa que uma garota como eu teria hasteado numa bandeira bem no alto pra exibir orgulhosa por ai “Ei, olhem aqui! o sorriso de um cara ganhou meu coração!” Olha, eu não teria feito isso mesmo.

Então vamos guardar essa carta aqui outra vez. Fingir que ela nunca foi escrita – que o coração continua protegido com o plástico bolha dos sentimentos – o que de fato quase não foi, se ele não tivesse me amado naquele sábado.

Mas amou.
E disso eu tenho certeza; porque foi o que mudou tudo. Se eu não tivesse sido amada nunca teria escrito essa carta de amor pedindo a ele pra ficar – e ele mudou tantas coisas, menos a minha mania de me enrolar toda pra falar coisas óbvias.

Então aqui está; fica, vai?
Porque sei que me amou, e sei quão difícil foi jogar toda sua precaução pro além e se arriscar por aqui. Tão difícil quanto aceitar que essa carta sempre foi sobre amor; e que eu sempre quis que você ficasse; muito antes de enrolar por meses, semanas, dias e suspiros; cartas inteiras; pra pedir isso. Pra te pedir pra você, pra te ter comigo – e aqui.

com amor,
cs