carta para ler na quarentena (e talvez reler depois)

Dia 28 de maio de 2020
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Sobre Textos

Foi quando os dias se tornaram um borrão do que um dia foram.

Foi quando as passagens de ônibus e avião foram canceladas, foi quando achei que meus avós fossem morrer de tristeza, e ainda assim essa talvez fosse uma forma de mantê-los a salvo. Foi quando se tornou muito difícil sair na rua. Falávamos há décadas sobre independência, desprendimento emocional e autonomia, e foi quando isso se tornou a lei da nossa sobrevivência que percebemos o quanto a arbitrariedade em escolher essas coisas é o que as tornavam preciosas, tão diferente de quando nos são impostas.

Então escrevi textos. Semanas a fio enfileirei as palavras e tornei a apagá-las. Me encolhi aninhada na arte. Enchi meus dias de música, e cinema. Chorei com livros. Personagens que eu sabia que amava – leituras de outrora – pra aquecer minha alma e quem sabe despertar algum sentimento maior que o medo e a apatia da maioria dos dias. Nenhum deles – dos textos, quero dizer – pareceu apropriado, e mesmo todas as personagens que eu já amava, tal qual as que conheci depois, não seguraram a onda.

Me frustrei profundamente com a minha profissão, percebi que nem tudo pode ser reinventado, e que na eventual possibilidade de se poder: talvez eu não seja a pessoa mais criativa na sala pra sugerir essas mudanças, porque é provável que na maior parte do tempo eu não faça a menor ideia do que estou fazendo e em realidade eu sequer deveria estar ali. Nenhuma parte de quem eu era, no mundo onde estava, parecia fazer sentido.

Continuei, então, tentando fazer a única coisa que dava sentido para os meus dias, ao mesmo tempo que tudo continuou mudando o tempo todo numa velocidade muito maior do que a minha capacidade de compreensão; do velho que falecera; do novo em gestação e de parto tão prematuro.

Na minha janela o dia virou noite outra vez, e a noite virou dia. O chá esfriou ao lado da cama, as xícaras se acumularam mais e mais. O outono virou inverno. O presidente virou… nada que não tenha sempre sido. Eu virei – O que eu virei? Eu virei tantas coisas que não sei se as palavras vieram viradas me acompanhar.

E os dias se tornaram semanas. Virei também de ponta cabeça para tentar mudar a perspectiva. A yoga mudou tudo, como é o costume de atividades físicas que fazemos sem pretensão de mudar nosso corpo pela força do ódio de não pertencermos a ele. Ainda esperei as palavras virarem eu, ou ao menos me seguirem gritando atrás de meus calcanhares tudo que eu deveria ter me tornado. As palavras virarem eu; repare; não virarem a mim. Mas virarem mesmo, se tornarem.

E então não aguentei mais.

As xícaras acabaram, era preciso lavá-las. Todas as lágrimas gastas com os personagens da ficção não davam conta dos inúmeros lutos que cercaram a vida. Foram quatro textos, esse à parte, e nenhum deles chegou ao fim, porque eu não me tornei elas, elas não se tornaram eu – as palavras, digo – não ainda.

Não ainda. Tudo que hoje é, um dia ainda não era, de modo que tudo que ainda não é pode vir a ser.

E as semanas se tornaram meses. Eu precisei de um sol. Após quase 6 semanas inteiras sem ver sequer o meu vizinho, decidi ir ao mercado. Decidi vestir um jeans, colocar um laço no meu cabelo. Me vesti de amarelo, porque fazia sentido ter calor e vida. Quis chorar, quis guardar para mim o sentimento de ter precisado chorar, quis registrar mais um luto com a polaroid e ela não tinha pilhas; essas também morreram.

Fez 18 graus nesse dia. Foi o dia mais quente da semana; eu vi todos eles pela minha janela enquanto se tornavam noite (para virar dia outra vez logo em seguida). Esse não vi pela janela. Esse vivi ao vivo. Live, eu diria, percebendo então a urgência da vida que acontece agora, que acontece ao vivo para além dos espectadores.

Comprei iogurte. As lentilhas estavam caras demais. Eu disse ao Uber que me trouxe com as compras para virar à direita enquanto indicava o trajeto com meu braço esquerdo, ele disse “Esquerda, você quer dizer?“, e eu disse, ainda apontando com o braço esquerdo “Não, moço, aqui ó, à direita.” Ele disse “Faz tempo que você não sai de casa, né? Essa é a esquerda.” E virou.

Os meses se tornaram a nossa vida. As passagens de ônibus se mantiveram canceladas. As de avião então… nem quero pensar. A vida ainda permanece rodeada de lutos sem enterros, de enterros sem velórios e há tantos respirando por aparelhos, tendo a sorte de respirar. Todos nós vivemos alguns deles; os velórios; de alguma forma ou de outra. Uns num dia, outros em outros. Uns de um jeito, outros de outros. Mas não se passa um dia em que parte do viver não signifique entender tudo que deixa de existir; os planos; os bilhetes de ônibus; o calor do sol numa caminhada de fim de tarde na pracinha; o próprio ar que deixa de chegar aos pulmões e tudo que se encerra pela falta dele.

Foi quando os dias se tornaram um borrão do que um dia foram que eu percebi quão doloroso seria me tornar um borrão do que um dia já fui. De tudo que quero ser. Que entre tudo que eu poderia ter me tornado eu não gostaria de ser alguém que não foi agora, ao vivo.

Comprei pilhas, então. Parecia apropriado agora que o sol recarregara tanto das minhas energias e esquerda e direita talvez tivessem voltado a fazer sentido sem que eu soubesse bem quando haviam deixado de fazê-lo. No entanto, apesar de recarregada, a polaroid só tinha um filme. Eu queria uma foto tão amarela quanto possível. Era importante – é importante – de me lembrar de quando o mundo foi cinza. De quando o sol não apareceu, de quando as cores morreram e as xícaras se empilharam enquanto o céu anoitecia e amanhecia sem distinção para além de claro e escuro, nuvens ou estrelas.

O que eu virei? Eu segui me perguntando. E escrevi esse texto, no qual ainda não tenho resposta. No qual ainda continuo fazendo a única coisa que dá sentido para os dias; seja outono ou inverno; dia ou noite; esquerda ou direita. No qual a arte e as palavras ainda são a âncora dando sentido ao barco que a tempestade insiste em tentar virar. E ele agora é coisas que nenhum dos outros quatro tinha sido até então. Só existem essas palavras porque existiu uma escritora com voz e um leitor com ouvidos, eu preciso de você. Vivo, respirando. Eu preciso de você; vivo respirando – ambos funcionam aqui.

Escolhi me tornar um pouco do que eu fui – retomando laços no cabelo, personagens do passado e sonhos de outrora que envolvem bilhetes de aviões e estão temporariamente suspensos, mas não mortos – um pouco do que sou agora, ao vivo em meio aos lutos, e não abandonar tudo aquilo que ainda dá pra se tornar num futuro que vai existir, em algum nível. Se a vida é frágil porque tudo que existe pode deixar de existir rápido demais, isso também não deveria significar que o que não existe pode, tão rápido quanto, se tornar?

Se você ouvir um click, fui eu. É a mais sonora evidência de tudo que eu podia ter virado; uma chave em mim, cuja porta aberta gira também uma chave em você. Palavra por palavra. Xícara por xícara. Alguns laços, dias ensolarados de 18 graus e pilhas depois, e sabe que o Chris Martin não mentiu, era tudo amarelo.

Foi ontem. Foi hoje também. Eu não sei se vai ser amanhã. Mas ainda sou eu, e porque sou isso há tanto mais que se pode ser.

fique em casa tanto quanto puder,
a vida ainda é ao vivo esteja você onde estiver.
isso, como os dias e as noites, eu sei, também passará.

“não ainda”, talvez, mas há de ir tão rápido quanto o que estava aqui já foi, certifique-se de ficar

com amor,
mcknnn