Reuni todas aquelas certezas sobre a vida e quem eu era para desistir de gritar à plenos pulmões e rascunhei. Comecei rasurando a sola de um Allstar vermelho, que muitos anos depois, após uso constante, se descolou todo, já não eram tão inabaláveis assim aquelas certezas, quanto mais eu crescia mais elas diminuiam.
Mas continuei rasurando, rascunhando e rabiscando, mesmo depois de não caber mais naquelas cadeiras minúsculas enfileiradas com um quadro verde em frente e o perfume inebriante de um garoto que me amava. Às vezes a gente cresce um pouco além de espaços que nos acolhem, e não observamos acontecendo porque dificilmente tem a ver com o tamanho de um corpo, mas com o espaço que a nossa alma ocupa na vida das pessoas, e no mundo que escolhemos habitar.
Coloquei a maioria das certezas redigidas em punho em envelopes, e os enviei. Chegaram tão longe… e já se fazem 10 anos. E as palavras se tornaram uma casa quando todo o resto ruiu, mas acontece de nem sempre serem tão acolhedoras hoje em dia, quando me mostram grandes verdades escondidas em pequenas mentiras, e vários silêncios nas entrelinhas não ditas.
Puxa, quanto tempo me levou pra entender! Meu Deus, foi toda uma vida, e vez após vez, texto por texto, selo por selo – um envelope selado após o outro, cada certeza por vez foi se tornando mais incerta e eu menor e menor junto com elas, porque soa curioso gritar que sou, estou, mereço e quero quando não sei quem ou o quê para cada um desses verbos demasiadamente mais ousados do que me atrevo a ser.
Havia um casaco de zíper verde escuro, me lembrei esses dias; eu nem gostava de verde até então e hoje essa memória faz sentido apesar de eu nunca ter prestado atenção nela; teria prestado se fosse um casaco azul ou laranja, que era quem eu era naquela vida, um por do sol de outono. Era um casaco cheiroso, que parecia uma casa. As manhãs às vezes marcavam 15 graus, e por dias houve neblina. E havia um garoto que me amava, embora hoje eu não saiba mais o que isso quer dizer.
Tinha uma casa que sempre cheirava a café coado. Tinham jovens rindo por todos os motivos pequenos e chorando pelos grandes. Eu não me lembrava. Me parece que há um selo mais importante do que identificar cartas em envelopes. É o que se coloca sobre uma ferida muito grande na esperança de despachá-la para outro lugar – disfarçá-la, e, quem sabe, fingir que ela nem existe.
Mas as dores que nos rasgam por inteiro, estrias latentes no coração, podem ser camufladas e seladas como cartas, mas nunca fechadas completamente. As lendas folclóricas que ouvi me fizeram entender: a dor é a história, o destino, e a estrada. Em tanto que nos compõe, dançando na ponta dos pés, acolhidos em casacos verdes, colhendo frutas silvestres no alto das árvores mais frutíferas, rindo das coisas pequenas ou chorando pelas grandes, amando o cheiro do café coado mas sem nunca tomá-lo, a dor é os pés que trilham tijolo por tijolo, pedra por pedra do caminho, e ela é o tijolo também, e o por do sol laranja com azul no alto da colina quando se chega, quando nos atrevemos a chegar.
Falar sobre ela, aquela garota com o casaco verde nas cadeiras enfileiradas, é falar sobre mim, ainda. Porque as tempestades reviram os barcos, e nos levam pra lugares que nunca esperamos chegar; às vezes elas nos devolvem pra ilha de nós mesmo, aquela que ousamos sair quando a nossa alma não cabia mais na vida das pessoas, no mundo que escolheremos habitar. Foi por isso que achei que não falaria mais – estive navegando.
É preciso devolver cada coisa pro seu lugar. Quão rasgado e destruído, arruinado e rabiscado esse lugar esteja, ele ainda é um lugar para se estar, tão incerto quanto os pés de allstar vermelho que me levaram – trouxeram? – a tantos lugares.
Não sonhei com isso, foi real. Achei que você, eu? deveria saber era importante dizer, eu realmente, realmente, de verdade mesmo, tentei com tudo que eu podia, era e tinha, e acontece ainda de eu sentir muito por não ter sido o bastante.
Mas foi real.