[conto] ela é tudo que conhecemos

Dia 30 de agosto de 2020
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Sobre Textos

Parecia com alguma fantasia que já conhecia. O que por si só já é um absurdo, veja bem. As fantasias não existem. Como alguém pode vir a conhecer uma coisa que não existe? Uma página a mais e nem parecia importante se virar para conferir um barulho vindo do corredor, já que sabia estar sozinha.

A fantasia lhe fazia companhia, claro. Uma página por vez entre suspiros, revirar de olhos, lágrimas e erguer de sobrancelhas. Mas as fantasias não existem, portanto estava sozinha.

Algumas vezes na companhia dela – da fantasia – se esquecia de respirar. Nunca ouvira falar de ninguém que morrera por fantasia, mas não seria a primeira vez que as páginas faziam coisas inesperadas, então também parecia possível de acontecer.

A próxima página virada a engolira de tal forma que o novo barulho surdo não ecoado no corredor, do lado de fora, também foi ignorado, até sua xícara de chá talvez esfriasse ali na mesinha lateral ao lado da poltrona onde ela estava, mas tinha outra coisa para mantê-la quente.

Havia uma garota na floresta. E ela chorava.

Estava completamente apavorada e queria voltar pra casa, embora não fizesse a menor ideia de onde esse lugar pudesse ser ou como chegar lá. E corria, mas não dava para saber muito bem se em direção a alguma coisa ou fugindo de outra.

Tropeçava as vezes e ao se levantar se apoiava nas árvores para se esconder enquanto recuperava o fôlego. Chegou a olhar de esgueira por cima do ombro para trás e suspirou aliviada secando algumas lágrimas e se virando para frente novamente. Mas não havia desacelerado, e deu de encontro à toda velocidade com um garoto.

Ele estava triste e abatido. Falou algumas palavras com mais indiferença do que uma pessoa com emoções teria julgado ser possível, lhe entregou um agasalho com zíper verde e não olhou para trás quando a fugitiva se desmanchou no chão entre as folhas secas e se encolheu ali enquanto soluçava. Era fantasia, sim, e, claro, as fantasias não existem, mas de alguma forma a dor parecia real e fora das páginas uma respiração tão ofegante quanto a da garota de coração partido tentava regular as batidas de seu coração acelerado e descompassado, ansioso.

Um garoto perdido uma vez lhe dissera que quando as pessoas não crescem, aqueles a quem elas amam vão embora. Então talvez crescer fosse um pouco como aceitar a realidade, mas o chá já estava frio. Queria saber se ele voltaria – o garoto – e o que aconteceria com a menina, então pare

\cia certo prosseguir.

Não sabia quanto tempo se passara na floresta. A menina parecia um pouco morta agora, olhos fundos, ombros caídos e rosto manchado da terra que grudara ali por cima das lágrimas, mas ao menos conseguiu se levantar, segurando firme o casaco que ele lhe dera.

Andou muito, já não corria mais e as árvores pareciam se espalhar um pouco mais a medida que ela caminhava por entre elas. Agora já podia ver o céu, o que trazia alguma cor entre as muitas folhas mortas às quais se misturara – é sempre mais morte que vida, antes de ser vida outra vez.

Numa clareira arejada, ao lado de um pequeno jardim com flores – flores mesmo, não só folhas secas – ela viu um casebre simplório. Não parecia acabado, era mais como algo indefinido e nenhum pouco perfeito, uma obra a ser concluída. As tábuas eram disformes, uma parte do telhado era mais pontuda que o outro lado, haviam latas de tintas encostadas no muro, e um carrinho de mão com terra recém mexida dentro de onda uma muda de qualquer fruto brotava. Vestiu o casaco sobre os ombros para deixar as mãos livres e se aproximou.

Chutou uma das latas de tinta ao se aproximar demais da janela. A lata caiu com um baque surdo, cheia, e não se abriu. Pela janela viu uma poltrona, e uma garota concentrada numa história sentada naquela imensa cadeira confortável, com uma mesinha lateral. Na mesinha lateral uma xícara de chá que podia ou não estar quente, e nos ombros dela outra coisa, tão familiar, certamente a esquentá-la, ou ao menos fazer companhia – são tantas coisas que podiam acompanhá-la, as coisas reais, claro, mas também algumas outras.

E talvez soubesse que a fantasia não existia de fato. Mas na maior parte do tempo parecia ser tudo o que conhecia.

Até se despir.