carta para uma amiga que precisa ir embora

Dia 29 de maio de 2018
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Sobre Textos

@ohhcouture

Eu cresci amando contos de fadas.

Quando eu era mais nova a minha mãe lia histórias fantásticas para mim. Desde antes de eu nascer eu ouvi falar sobre leões reis, guarda-roupas mágicos, princesas corajosas, sapatinhos vermelhos de cristal e gatos sorridentes guiando o caminho. Todas essas histórias tem uma coisa em comum. Uma só não, aliás, várias.

A primeira delas é que nenhum personagem começa a história da forma como terminou. Enquanto escritora eu sei que a jornada foi feita para transformar o personagem, e que se ela não o faz amadurecer, crescer, mudar ou ser – de alguma forma – diferente de quem ele era quando começou o livro, é como se ela nem tivesse existido. Quem gostaria de escrever ou viver uma história que era melhor nem ter existido? Nenhum personagem merece isso – ninguém merece isso.

A jornada do herói, como chamam, é o que faz a história valer a pena. Todos os personagens a iniciam de uma forma e a terminam de outra. A vida é sobre isso, e é por isso que nos dizem para nunca ter medo de transformações. Mudar de opinião, gostar de uma coisa que você experimentou há muito tempo e não gostava, cortar o cabelo mais curto do que jamais pensou ter coragem, assumir seu gosto musical ou estilo em se vestir, trocar de curso na faculdade, se distanciar de pessoas que você confiava e não confia mais. Amadurecer, crescer, mudar ou ser – de alguma forma – diferente de quem você era quando começou. Você vai passar – muito – por isso. Significa encontrar a sua verdadeira voz.

E observei também um denominador comum entre essas jornadas e esses heróis. É que são jornadas difíceis. Não pode haver nada de simples em abandonar toda a vida que se conhece para se arriscar no além-mar. Digo, no desconhecido. Os personagens que não embarcaram em jornadas foram convocados para elas por acidente, ou por acaso – mas a jornada os mudou mesmo assim, trazendo a eles um novo conhecimento e perspectiva sobre si mesmos que não tinha antes. Dorothy Gale é uma personagem por quem tenho grande apreço. E ela nunca embarcou numa jornada, ela foi sugada para dentro de uma.

O terceiro ponto que costura todas as histórias vai além da transformação que a jornada proporciona e como essas jornadas se apresentam. É quem trilha a jornada conosco. Totó, eu não acho que estejamos mais no Kansas. Eu nunca disse, mas poderia ter dito muitas vezes. Porque foi muito mais de uma vez em que me vi girando no olho do furacão, sem chão sob meus pés e sem apoio para as mãos, sendo lançada para muito distante da minha zona de conforto e nada além de um amigo muito leal ao lado.

Tem pessoas que escolhemos para estar ao nosso lado, tem pessoas que são chamadas para as mesmas aventuras que nós, outras que são jogadas pelo furacão no meio delas, tem gente que nos escolhe para andar com elas pelos tijolos amarelos. E é a lealdade de quem caminha conosco que determina os pedaços do caminho em que vamos cantando de braços dados e os quais vamos fugindo de raios, trovões e macacos voadores se aproximando do oeste.

E veja bem, o nosso trajeto permanece o mesmo. A distância que percorremos permanece a mesma. Amadurecer, crescer, mudar ou ser – de alguma forma – diferente de quem éramos começamos, ainda é uma coisa que nós vamos passar. Mas o terceiro ponto – é quem trilha a jornada conosco – é que determina a forma como todo o resto acontece.

Eu percorri uma jornada certa vez com uns leões medrosos. São pessoas que se apresentam para nós como pessoas aparentemente forte e de bom coração, mas que não tem bravura o suficiente para enfrentar seus próprios medos, e por isso tem medo de todo o resto. Sair em busca de coragem é entender que quando não há medos do lado de dentro os medos do lado de fora não tem força para atrapalhar.

Encontrei também certos espantalhos, expostos às durezas da vida sem nenhum tipo de cuidado e por mais tempo do que alguém pode suportar – é fácil esquecer o que realmente importa. Ter pessoas em nossas vidas com a cabeça no lugar e um cérebro em pleno funcionamento é o que nos permite continuar a jornada mesmo quando queremos seguir um caminho mais fácil. Os amigos com cérebro sabem que não dá pra fugir de onde precisamos ir, trilhar, chegar. Eles são sinceros e nos colocam de volta na estrada de tijolos amarelos.

O furacão tira a gente de casa, nos joga em outra terra, com perigos diferentes e estranhos além de tudo que pensamos existir, e ele tem a gentileza de nos dar coragem e sensatez, mas às vezes ele jogar pessoas com bom coração no meio das nossas aventuras, (por vezes pessoas que por terem sido afastados demais não se lembram de como fazer de outra forma, mas o coração segue lá dentro). Percorrer o caminho com pessoas que tem coração é um fator que determina quão longe você pode chegar. As pessoas de coração são as que tem gentileza o suficiente para nos avisar quando pisamos fora do caminho e quando estamos deixando que as transformações necessárias que a jornada exige está nos levando pra longe demais de quem éramos.

Tem pessoas que procuram saber das nossas fraquezas para nos tirar do nosso caminho. A lealdade das pessoas que muda quem nós somos e faz a jornada valer a pena para além de nós é quando elas nos enxergam da forma mais fraca que podemos chegar, sabendo quão limitados somos e nos fortalece para que sejamos capazes de mudar sem esquecer de quem somos. Chegar ao fim da jornada é chegar diferente, sim. Mas ainda é necessário que sejamos nós mesmos. A jornada é do herói, mas ele nunca chega ao fim dela sozinho. Nunca. Carrega partes do eu que saiu na jornada, carrega partes de quem caminhou com ele, de quem o carregou até ali, de quem ele é agora.

Ele nunca chega conforme saiu. Nunca.

Ele ganha coisas que nunca sonhou existirem. Deixa para trás toda a vida que conheceu sem saber se ainda vai caber nela quando voltar – se ela vai caber nele. A transformação começa no embarcar. No abrir mão, no ser capaz de aceitar a estrada de tijolos amarelos como um meio para um fim.

Eu cresci amando contos de fadas. Mas eu só de fato os entendi quando vivi um. A jornada não é sobre encontrar o amor. Nem sempre se escolhe a jornada, às vezes o furacão nos joga pra dentro dela. Mas nunca nos joga sozinhos. A jornada é sobre encontrar a si mesmo – e o mundo todo que cabe aqui dentro, muito além do meu celeiro. E todo mundo que caminha na estrada dourada (já me disseram que é que nem a vida).

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I wish to go home.
E a aventura acaba tão rápido quanto começou,
a estrada de tijolos desapareceu, nenhuma cidade esmeralda no horizonte,
e o celeiro no quintal.

com amor,
cs
(que vai de glinda às vezes)