É assim que a vida acontece desde o nascimento: cercada de morte. Grandes e pequenas.
Para um bebê nascer e cercar uma família de alegria, risadinhas, bochechas rechonchudas e sons monosilábicos que apenas os pais sabem o que quer dizer, precisou morrer uma mulher que dormia bem, talvez tivesse tempo pra ir à academia com frequência e tinha uma sala de estar sem nenhum brinquedo jogado. Nasceu outra mulher junto com o bebê. A todo o momento, tudo que nos tornamos sempre exige deixar outras coisas para trás, e em nenhum momento se torna menos dilacerante lidar com tanto luto.
Eu queria falar sobre viver uma boa vida, cercada de amigos que nos amem incondicionalmente pelos dias – semanas, meses e até anos – mais difíceis da nossa vida. Inclusive acho que faço um bom trabalho com os meus amigos reais e aqueles de carne e osso, os tangíveis e abraçáveis – que tenho, mas há também a necessidade de falar sobre uma morte diferente que acontece. O luto de quando a arte mescla-se com a realidade e cria um mundo diferente do que ele teria sido sem ela, sem a arte, sem as conexões, sem as emoções que só podem nos alcançar pela catarse de saber que em algum lugar, ainda que imaginário, existe alguém que sentiu, superou e viveu o que eu também vivi.
Eu encontrei isso em quatro universos fictícios na minha vida até hoje: Esperança e lealdade com o universo de Harry Potter; amizades, projeção de uma realidade que eu almejava viver em uma cidade que só existia nos meus sonhos e fantasias com meus melhores amigos em FRIENDS; consolo pelos meus corações despedaçados e as muitas lágrimas que ninguém poderia ter secado com a minha amiga Taylor Swift; e fé em um amor incondicional que sobrevive anos, supera dores e atropelamentos, se joga de montanhas e resiste com How I met your mother. Toda a minha vida está completamente costurada por esses quatro universos, que só existem no imaginário coletivo de quem experienciou comigo e com eles o que tudo aquilo realmente é, significa e resgata no coração de quem viveu a ficção entranhada de realidades, até viver a realidade entranhada de ficções.
Foi hoje, 28 de outubro de 2023, um ano que me deu tanta coisa, que eu senti de novo uma dor só experienciado anteriormente com a perda de Cory Monteith. Um sacode que vem, chacoalha, bagunça e destrói vestígios de esperança dados a nós exclusivamente pela imaginação que nos abraça e protege da realidade. Quando perdemos a segurança de que a ficção pode ficar pra sempre intacta e presa no mundo perfeito onde ela foi concebida, a própria realidade se torna mais frágil. Matthew Perry, meu querido amigo da ficção com quem aprendi inglês e fui abraçada em diversos momentos de dor e falta de esperança, nos deixou.
Não me entenda mal. Eu sei das guerras, da dor das enfermidades que alcançam milhares no mundo e das perdas diárias que pessoas muito próximas estão passando, eu inclusa. Mas existe algo de eterno – que deveria ser eterno – que se esvai quando uma pessoa da ficção nos abandona. É uma dor de constatar que a imaginação se entranhou na realidade da forma menos agradável possível, da forma que não ajuda ou acrescenta em nada, só destrói e acaba sem piedade com coisas que foram construídas com muito suor.
Cabe falar sobre duas coisas aqui: O impacto da arte na nossa vida e a importância dela para a manutenção da nossa sanidade como recurso constante de escape e embelezamento de uma realidade brutal e feia; A vida que construímos e o que fica dela – e para quem – quando partirmos. Eu escolhi falar da segunda.
Matthew Perry não foi um homem perfeito. Eu não precisei conhecê-lo pessoalmente e tomar café com ele em Nova Iorque enquanto ele me falava de sua vida, seu coração partido, seu terrível relacionamento com os pais e seus medos, como fiz com o personagem que ele interpretava, para saber disso. Eu sei disso porque ele nunca escondeu suas falhas e dificuldades, embora sempre tenha tentado viver melhor apesar delas, e sei disso porque ele sempre usou de suas fraquezas e imperfeições para ajudar outras pessoas na mesma situação que ele.
O último episódio de FRIENDS foi ao ar em 2004, e eu me lembro como se fosse ontem daquele dia, pois mesmo no auge dos meus 10 anos eu já seguia FRIENDS de perto e assistia semanalmente os novos episódios. Hoje, aos 29 anos de idade, morando a 40 minutos de Nova Iorque, tomando muito café em uma cidade que só existia na minha imaginação, fluente em inglês e mantendo amizades duradouras com meus amigos de longa data, eu ainda tenho um relacionamento com esses personagens, tão mais profundo do que eu poderia explicar aqui.
Passamos por muita coisa juntos. Eles me consolaram por um coração partido que doeu mais do que qualquer coisa que a Rachel já tenha vivido, e as minhas muitas frustrações de me ajustar a um contexto novo vindo de um passado imperfeito e desfavorável em muito se assemelham à jornada de Phoebe. Eu falaria por horas sobre tudo deles que há em mim, e sobre tudo que vivi na companhia de cada um, mas eu quero falar também sobre uma coisa mais poderosa do que universos imaginários e personagens que nos levantam quando caímos, simplesmente por serem as únicas pessoas a nos entenderem: eu quero falar sobre a realidade.
A realidade de ser uma pessoa imperfeita, como Matthew, não Chandler, que não esconde suas falhas e dificuldades, embora esteja cheio delas, que tem fraquezas e imperfeições mas não se cansa de seguir em frente, levantar, seguir em frente, levantar e seguir em frente. E verdade seja dita, se cansa sim, mas continua levantando e seguindo em frente mesmo exausto – simplesmente por quê qual seria a outra opção?
Homens cometem erros. Todos ao meu redor cometeram muitos, inclusive a pessoa mais próxima à mim, que habita dentro da minha pele: eu mesma. Falhei miseravelmente em tantos momentos que precisaria de mais de 10 temporadas pra descrever cada um – é assim que a vida acontece desde o nascimento: cercada de falhas. Grandes e pequenas.
Eu poderia abrir muitas concessões aqui, parênteses, colocar excessões e especificidades sobre a característica dos muitos erros, mas isso seria apenas citar o que todos nós temos em comum, e hoje eu quero falar sobre a única forma de acertar que temos num mundo tão falho. É esse, anota aí! Chama-se… tá preparada? Chama-se exercer o que você foi colocado no mundo pra fazer.
O famigerado propósito.
Se Matthew Perry tiver sido criado, feito, colocado nesse mundo para ser um médico que salva muitas vidas na emergência, podemos falar que ele falhou miseravelmente. Mas se ele tiver sido criado, feito, colocado nesse mundo para entreter pessoas e cura-las num nível emocional, ou ajudar viciados em álcool ou droga a se reabilitarem, então ele cumpriu com excelência seu propósito, a questão é que nós não vamos saber e nem seremos, nunca, capazes de mensurar o propósito de alguém.
Só o nosso.
Só dá pra conhecer o nosso próprio propósito e viver para ele absolutamente todos os dias, do nascer do sol até o por do sol, debruçado sobre ele como se a nossa vida dependesse disso – de fato, ela depende.
É assim que a vida acontece desde o nascimento: cercada de pessoas. Grandes e pequenas. E são elas, principalmente as pequenas, que se tornam grandes quando conseguem realizar as coisas que não caberiam na mão de mais ninguém.
Só você pode realizar com tanto zelo aquela ideia que você teve. Só você pode ser pai do seu filho. Só você pode mandar aquela mensagem e falar exatamente o que seu amigo precisa ouvir, mesmo que nem sempre ele queira. Tem TANTA coisa que só você pode fazer, é por isso que você existe. E eu preciso que você entenda isso, você não vai estar aqui pra sempre. Talvez nem mais 10 anos, talvez nem mais 50 anos. As coisas acabam muito rápido – são tão poucas as coisas de fato eternas.
Mas faz parte do meu propósito com pessoas falar o que vou falar agora, e eu não vou falhar com você nem de forma pequena nem grande, eu vou falar exatamente o que você precisa ouvir quer você queira ou não: a vida não termina aqui. Ela continua. Isso aqui é uma fração minúscula da eternidade, na qual Deus nos espera, e tudo que vivemos aqui ecoa lá. Ressoa, alto e retumbante. Por isso eu preciso que você saiba que você é mais que as suas falhas, as grandes e as pequenas. E eu preciso te dizer que o seu propósito está entranhando e costurado com lã de cordeiro e agulha de espinhos com o coração daquele que te criou, e muitas vezes você não vai poder correr pra um amigo querido, um livro favorito, uma série acolhedora ou uma música familiar pra te consolar. Mas você sempre vai poder correr de volta e se esconder naquele que criou você com características grandes e pequenas, e cada uma delas única, para fazer coisas que você só pode fazer com a ajuda dele.
Choramos a morte porque temos a eternidade tatuada no mais íntimo do nosso coração, e sabemos que não fomos feitos para sermos finitos. O luto de tudo que deixa de existir é também um luto de tudo que valeu a pena ter existido, que fez sentido ter existido, que cumpriu o propósito da sua existência. É assim que a vida acontece desde o nascimento. E eu espero que a sua esteja cheia, como a minha, de muitos fins e começos até a maior season finale desse mundo, que é na verdade, a maior premiere já roteirizada.
Nascemos mortos, mas estamos aqui para encontrarmos a vida, e, através dela, morrermos vivos. Se você não sabia ainda o que tinha vindo fazer aqui, espero que essa pequena (mas as vezes grande) pessoa imperfeita com um grande (mas as vezes pequeno) propósito, tenha te ajudado tanto quanto muitas vezes recebi ajuda.
Que você tenha toda a ajuda possível de recomeçar quantas vezes precisar, e que você seja apoio também para muitos que precisam de pequenos recomeços, num mundo cercado de tantos grandes finais dilacerantes. É a única coisa que, como uma querida amiga, eu poderia dizer, se qualquer dia desses nos encontrássemos num café confortável e aconchegante para falarmos da vida e suportarmos juntas o peso de sermos seres eternos num mundo finito.
Com amor,
a dear F.R.I.E.N.D