Aconteceu de que o café que eu tomei pra me sentir um pouco mais desperta um dia desses trabalhando no turno da noite tinha gosto de café do Tio Rick.
1 da manhã e meu corpo sentindo como se fosse 5 da manhã. Exausta. cansada e fechando olho. Escrevi o nome das medicações nos prontuários dos pacientes mas não registrava na mente o que estava escrevendo. Quase nunca tomo café. Sem dúvida não tanto quanto tomava sob o sol já quente do Goiás quando meu tio fazia pra mim. Mas sim, ainda amo o gosto e o cheiro, que sempre vem com sabor de memórias das minhas férias na terra do pequi.
Esse dia tomei. Enquanto os pacientes se queixavam de dores, meu chefe suspirava de aborrecimento e uma das minha colegas de trabalho atrasava o serviço, eu escapei 2 minutos pra cozinha das auxiliares de enfermagem e passei um café improvisado. Fechei meus olhos pra inalar a cafeína. O cheiro delicioso subiu e a dor de cabeça foi embora na mesma hora como se eu tivesse acabado de acordar às 7 da manhã descansada de uma noite de sono tranquila com 9 horas de sono ininterruptas.
Não era o caso. O caso era que eu dormira 5 horas naquele dia.
Mas foi subir aquela fumacinha narina adentro que eu sorri e soube, no mesmo segundo, que Tio Rick teria ficado ofendidíssimo de saber que eu tinha pegado pó de café moído e colocado dentro do infusou de chá de uma colega pra passar um café com água “fervida” da maquina de café instantâneo. Mas não teria ficado tão ofendido assim quando eu contasse que o café era colombiano, e era delicioso!
Foi um segundo só, mas aquele cheiro delicioso que me despertou, encheu meu coração de valor sobre tudo mais que eu também tinha recebido de presente dos meus tios.
Fiquei pensando na Tia Bibi fazendo inúmeros plantões noturnos com sono. Lembrei de como ela foi corajosa em ir estudar em outra cidade. De quanto ela foi corajosa… em estudar. Tudo sobre a jornada dela me deu coragem para tantos momentos diferentes da minha vida que eu talvez só tenha entendido muito tempo depois – muitos nem entendi ainda, mas não entender não quer dizer sentir menos. Faz parte da vida, não entender e saber mesmo assim.
Quando eu era criança não entendia como minha Tia Jou fazia um frango de molho tão gostoso e limpava o fogão mais limpo que ninguém (até mais que a minha mãe!). Não entendia, mas comia o arroz branquinho e soltinho com frango de molho e pedia mais. Também dormia muitos noites com o cursinho de pelúcia londrino dela, que ficou quando ela se mudou pra outro país, pioneira de sua geração. Em pouco tempo minha duas tias mais legais foram morar longe. São coisas que a gente não sabe até acontecer quão fundo é o corte que a saudade faz no coração. Uma cirurgia cardíaca de peito aberto sem anestesia doeria menos. E aqui estou eu, 15 anos depois rasgando outros corações que me amam também. Me faz imaginar onde minha sobrinha estará em 20 anos, e será que o irmão dela já vai ter filhos?
Em outras perguntas tão importantes quanto as heranças da minha família, como o paladar treinado para os melhores cafés, a coragem inusitada e a ambição de quem é pequeno mas sonha alto (e também cozinha bem), passei um tempo me questionando sobre o que meu Tio Flávio teria feito com a frigideira amarelinha de duas tampas que ele fritava ovo quando morava lá na casa da minha avó. Era uma frigideira do tamanho de um ovo frito, que podia virar dos dois lados (a tampa também era um “fundo de panela”) e fazia ovos fritos deliciosos pra essa sobrinha mimada que amava pão francês quentinho com ovo de gema mole amarelinha escorrendo pelos dedos. Esse é um dos homens mais admiráveis que já conheci.
Me desculpe aos demais da família, mas está no meu DNA ter preferência pelos caçulas (desde que eles sejam extremamente respeitosos com a esposa e filha, e, talvez nesse caso, ruivos). Fez tanta diferença na minha vida ser validada por ele em momentos que outras pessoas deveriam ter me entendido e defendido, com o próprio sangue, com o próprio punho, mas escolheram não. Fez tanta diferença ver meu Tio Flávio formar família, tomar decisões difíceis e se posicionar sobre coisas que talvez nunca achou que fosse precisar escancarar, porque as outras pessoas não deviam ser assim tão burras. Foi mais que todas as tardes de pão francês com ovo frito de gema mole que escorre amarelinha pelos dedos.
Fez toda diferença ver um homem se posicionar para o papel que é dele e ter honra. Meu Tio Flávio não foi o único, nem o primeiro. O Tio Rick também. Homens tão diferentes, mas tão iguais por serem Homens. Ambos que tomavam café preto no sol do Goiás. Ambos que me receberam pras minhas férias na infância tantas vezes e me fizeram rir de suas piadas espertas e afiadas. Um ruivo e o outro moreno, os dois de barba muito bem aparada e abraços aconchegantes. Nenhum deles que em nenhum momento da minha vida me fez duvidar nem do meu potencial e nem da minha identidade, e nem do quanto era possível ser amada.
A herança é minha quando eu tomo café preto colombiano da máquina de café instantâneo 1 da manhã do turno de enfermeira da madrugada em um país estrangeiro. Eu sou meus tios em cada parte minha. Eu sou sangue e carne e enfermeira e estrangeira – e caçula também. Eu sou o amor também, porque nem todos meus tios foram carne e sangue, alguns foram café. Só café.
São sempre as pessoas que a gente menos espera que nos marcam das formas mais não imaginadas possíveis. Sempre os cirurgiões menos improváveis rasgando e cosendo e apertando e esticando e criando mais espaço onde não tinha pra tanta bagagem que nenhum viajante tem como usar numa viagem assim tão curta que nem a vida terrena.
A herança é minha, Tio Rick, quando eu falo do amor de Cristo pra qualquer pessoa que esteja lendo esse texto. Foi assim que você me ensinou. Ei, você, Jesus te ama demais da conta!
Meu Tio Xitão (que também foi meu pai), me ensinou pela primeira vez o que era um MACIntosh. Me ensinou (sem saber que estava ensinando) como ter um chefe meio biruta e não surtar por isso. Ele me ensinou a ler tirinhas, e ele foi o Sr. Incrível da minha Garota Invisível. A herança é minha quando eu vejo um saco de ovomaltine crocante no mercado.
Minha Dinda Cris (que também foi minha mãe), me ensinou como ser ambiciosa, dedicada e comprometida com as minhas prioridades. Me ensinou que Deus é poderoso. Que o suor do trabalho e o compromisso conquistam grandes coisas. Que é importante abrir mão de algumas coisas para ter outras, e é muito muito muito importante saber o que abrir mão. Que saudades de abraça-la. A herança é minha quando eu abraço meus gatos. Quando eu tomo suco de uva, e quando eu insisto em tirar a carteira de motorista mesmo odiando a ideia de ter que manejar um veículo.
Eu queria que meu avô soubesse que a herança é minha quando eu consegui descrever o que era um favo de mel em outro idioma sem saber a tradução exata para a palavra favo (em inglês é hive, caso você queira saber, mas eu duvido que meu avô, sendo o melhor apicultor de toda minha existência, tenha algum dia sabido disso).
Durou menos de um minuto. Muito rápido eu tive que voltar ao trabalho e escrever mais nomes de medicações em prontuários de pacientes. O aroma do café (sim, o colombiano “passado” com o infusor de chá na maquina de café instantâneo) que me permitiu voltar pro trabalho revigorada e terminar meu turno noturno como auxiliar de enfermagem; aqueles dois ou três goles mais que suficientes me fizeram sentir milionária com cada herança que eu ganhei, abençoada demais pra não me exaltar de uma alegria honrada, que eu nem entendi na hora, mas soube.
Precisei vir aqui e escrever esse texto – que só se tornou uma releitura de um versículo da bíblia depois de pronto. Precisei fazer isso não porque sabia (ou entendia) o que ele seria. Mas porque tomei um café e não me senti cansada, e foi menos de um minuto, mas eu ri com o canto da boca segurando a caneca, e soube que meu Tio Rick teria amado saber que eu ainda tenho minha pequena parte da herança comigo, mas que essa nem é a maior Herança que já ganhei na vida, porque a bondade do Senhor me acompanha, em tanto, por causa dos que vieram antes de mim.
Viver mil anos não me permitiria agradecer cada um de vocês por isso, e mesmo àqueles que já não posso mais fazê-lo, continuo com a minha aliança com vocês tão protegida quanto a nossa com o Senhor. Obrigada por me fazerem parte, e herdeira, do povo mais abençoado do mundo.
9Lembrem que o Senhor, nosso Deus, é o único Deus. Ele é fiel e mantém a sua aliança. Ele continua a amar, por mil gerações, aqueles que o amam e obedecem aos seus mandamentos, 10porém castiga de uma vez os que o rejeitam. Ele não demora em castigá-los e destruí-los. 11Obedeçam, pois, às leis e aos mandamentos que hoje eu estou dando a vocês e façam tudo o que eu mando.
12— Se vocês derem atenção a essas leis e as cumprirem fielmente, o Senhor, nosso Deus, manterá a sua aliança e continuará a amá-los, conforme prometeu aos nossos antepassados. 13Ele os amará, e abençoará, e fará com que se tornem mais e mais numerosos. Ele lhes dará muitos filhos, boas colheitas de cereais, uvas e azeitonas e muitas crias de gado e de ovelhas. Deus lhes dará todas essas bênçãos na terra que ele vai lhes dar, conforme o juramento que fez aos nossos antepassados. 14Vocês serão o povo mais abençoado do mundo. Todos terão filhos, e todos os seus animais terão crias. / Deuteronômio 7:9-14