Tem alguém que saiu da sua vida que você diria alguma outra coisa se pudesse?
É um grande clichê, mas eu penso muito sobre o fim das coisas quando penso na morte. Escrevi no meu último texto que a morte é apenas o nome que se dá quando alguma coisa chega ao fim. E, essencialmente, isso significa que todas as coisas vão morrer. E, sabe, a morte de alguém não significa que essa pessoa não existe mais, ou que ela está sete palmos debaixo da terra. Significa que você não pode contactá-la. Significa que não importa o que te aconteça essa pessoa não pode te ajudar. Significa que ela não está aqui mais, e você está, e você vai viver coisas – novas coisas, grandes coisas, coisas assustadoras – sem ela sequer ficar sabendo.
E, sendo bem sincera, a gente não pensa sobre isso direito no dia-a-dia. E tudo bem, porque a morte é o tipo de assunto que torna a vida muito diferente e nem sempre isso é o que deveria ser. Esperar que todo mundo entenda o valor das coisas – das pessoas, das relações – antes da morte não é realista. É como esperar que todo mundo vá se tornar poeta. Algumas pessoas simplesmente não tem o quê precisa.
E, de fato, encarar a fragilidade das coisas é uma condição que requer cautela. E o mundo não é feito de pessoas cautelosas. Você sabe, nem todo mundo vai se tornar poeta. Mas você sabe como é ligar para alguém que você sabe que não vai te atender?
Ligar para alguém que está morto é como esperar que todas as pessoas se tornem poetas. Não pode ser feito. Não pode ser atendido. É uma chamada sem fim, na qual, a cada segundo, você espera que o turu-turu seja substituído por um Alô, que, você sabe, os mortos não podem dizer. E os mortos, mesmo aqueles que encheram a sua vida de vida, não podem falar sobre essas coisas. Porque a morte é o fim das coisas como nós a conhecemos. Por isso às vezes matamos pessoas em nós. Não porque esperamos que elas deixem de existir, mas porque esperamos – precisamos – que elas deixem de existir como nós as conhecemos.
E existem pessoas sobre as quais não podemos dizer certas coisas. Ou pensar certas coisas. Porque elas são queridas demais à nós para que aceitemos que morreram. Existem pessoas que seguram consigo, para sempre, mesmo depois do fim, uma parte nossa. Tão intrinsecamente nossa, de quem éramos, que aceitar a morte da pessoa se torna muito mais difícil pois sabemos que não é apenas à ela que estamos dizendo adeus, mas também à todo eu que éramos enquanto aquela pessoa vivia. Nós seguramos conosco os fragmentos dos outros.
Os outros seguram com eles os nossos fragmentos.
É uma parte do que torna as coisas eternas. Ao morrer eu me diluo de mim e existo, meio aguada, meio fosca, naqueles que me carregam. Isso faz de mim eterna. A morte não pode ser meu fim pois eu não vivo só em mim.
Dizer adeus. Perder alguém. Encarar a morte. São ações que nos custam. Mas vamos ter que fazer isso. Repetidas vezes vamos ter que fazer isso. E nunca vai haver um jeito certo de fazer. Alguns de nós ainda ligam para os mortos sabendo muito bem que se trata de uma linha muda. É curioso como às vezes ao tentar contactar uma pessoa que se foi o que nós estamos fazendo, na verdade, não é esperar que ela volte, mas que traga consigo todo o nós que existe nela.
Por isso, tem alguém que saiu da sua vida que você diria alguma coisa se pudesse? Tem algum alô que você espera ouvir, que faria alguma diferença? Você já teve um dia tão ruim que só uma pessoa que já te conhecia muito antes de você deixar de existir como você conhecia poderia te resgatar de uma existência na qual você não possui mais os fragmentos de si mesmo?
Eu já te disse tudo que eu precisava. E mesmo que haja uma nova infinidade de coisas que aconteceram depois, fragmentos do meu eu que você nunca vai ter acesso, tudo bem. Pois há uma caixa novinha em folha com uma porção de cartas que dessa vez vai realmente ficar apenas comigo. E, sim, às vezes me falta ouvir as palavras que as minhas frações em você diriam de mim mesma.
Escrevi, por anos, cartas de amor a seu respeito muito ciente de que elas deveriam ser cartas de apenas amigos. E agora guardo quilos e mais quilos de tinta e lágrimas em papel em uma nova caixa do que poderiam ser apenas anônimos.
Pois você não é quem era quando eu deixei um fragmento meu contigo. E é no não sabendo quem você é que eu sei, só pode ser muito diferente do você de antes para deixar morrer o meu eu que te confiei. Entendo que é no enxergar as coisas – como nós as conhecemos – morrerem que aprendemos a enxergar a vida – como não a conhecemos – nascer. Mas o custo é sempre a morte.
O custo da vida é sempre a morte.
Se eu pudesse te dizer algo, logo a ti, razão das minhas primeiras cartas guardadas numa caixa de sapatos, logo a ti que sempre me leu muito bem, que sempre atendeu minhas ligações, eu diria que acho que tudo bem você não enxergar isso. E tudo bem não se enxergar nisso.
E tudo bem não atender o telefone. Não são todas as pessoas que vão se tornar poetas e encontrar beleza em todas as coisas. Em todas as mortes. Em todas as dores. Em todos amores.
Mas todas vão sim, em algum momento, se tornar poesia.
Eu gostaria de pedir uma categoria no Oscar só para esse texto. Obrigada, academia. Sério. Estou apaixonada. In love. Me identifiquei em váaarias partes… citar uma: “Escrevi, por anos, cartas de amor a seu respeito muito ciente de que elas deveriam ser cartas de apenas amigos. E agora guardo quilos e mais quilos de tinta e lágrimas em papel em uma nova caixa do que poderiam ser apenas anônimos.” A catarse aqui foi gigantescaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa… SOCORROOOOOOOOOOOOOOOOO… Meu mundo caiu. kkkkkkkkkkkk aff, sorry, sempre tenho que quotar a Maysa. Amo você! Inspiradora!!
@Ana Carol, HAHAHAHAHAHAHAHAHAHHAA, quase não sabe como me ganhar assim INDICANDO ME AO OSCAR, nada demais, né, boba!
A melhor é saber que realmente você compreende a sensação que eu tento passar aqui.
CATARSE, é o nome certo.
Obrigada, Dorc! <3