a valsa da vulnerabilidade – que ninguém dança sozinho

Dia 21 de janeiro de 2020
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Sobre Textos

Eu saí essa semana com uma roupa que eu tenho, um collant de ballet rosa bem macio que mandei fazer pra uma apresentação, tem manga longa e as costas totalmente de fora, quando o visto me sinto a própria solista da cia de ballet russa. Gosto das minhas costas. É uma parte do meu corpo que gosto – e não são muitas, devo dizer. Então quando eu saio com esse collant, eu me sinto bem confortável e elegante (porque bailarinas são elegantes, e o collant é de bailarina).

Eu queria ser bailarina uma vez. Aliás, mais que uma, fiquei anos querendo, enquanto treinava. Mas não acho que tenha sido, nunca achei que fosse boa, sempre fui aquela bailarina gorda do cantinho, a que não é muito ágil, que cansa rápido, que não lembra dos movimentos da aula anterior, que pra realmente “chegar lá” tinha que continuar treinando.

Mas onde é esse “lá” do ideal que eu nunca alcancei? É mesmo assim tão longe? Eu sei que tinha outras qualidades, claro, mas não eram as mesmas que uma bailarina “de verdade” deveria ter. Também não sei se eu levei a sério todo o negócio de treinar muito, porque eu não era como as outras, que poderiam se tornar boas, eu só estava lá. Não sendo bailarina na aula de ballet. Tem dessas mesmo, ou a gente se torna no minuto em que se propõe a ser?

Uma vez eu namorei um cara que achava que eu era bailarina. Ele achava que eu era muitas coisas que nem sei se eu era – se eu fui – e valeu a pena a dor de uma vida inteira aquela oportunidade de me enxergar através daqueles olhos. Aconteceu que ele se tornou muito importante pra mim ao longo dos anos, e eventualmente terminamos e isso me fez perder uma coisa importante, que era o olhar dele sobre mim.

Servia como uma bússola por uma parte da minha vida. Se eu não soubesse pra onde ir, ele me apontava, se eu não soubesse quem eu era, ele me dizia, se eu achasse que não era, não podia, estava só treinando, ele me fazia sentir na cia russa de ballet.

Um dia eu estava deitada de bruços com a camiseta toda fora do lugar e ele me deu um beijo nas costas. Foi uma das coisas mais íntimas que já compartilhei com alguém, não lembro de ter recebido muitos beijos nas costas ao longo da vida, mas lembro que me senti vulnerável e em um lugar seguro. A vulnerabilidade é frequentemente vista como uma falha a ser reparada, uma coisa ruim.

Naquela ocasião não foi. Como quando ele disse que eu era bailarina e eu achei que fosse, naquele momento com as costas expostas, a guarda baixa e um sorriso de canto de boca discreto de quem não diz tudo em voz alta, mas sente, eu não tive medo. Eu só fui.

Não teve treinamento, não me senti menos por não ser qualquer coisa que esperavam que eu fosse, não tinham outras pessoas com mais qualificações e habilidades do que eu. Tinha só a gente, minha blusa toda torta, e nenhum collant com super poder especial de me fazer sentir que eu era tudo que nunca fui.

Frequentemente quando eu uso meu collant rosa das costas totalmente expostas, me sinto vulnerável, como se a qualquer momento alguém fosse me falar todas as coisas que eu não sou. Mas a gente aprende a se blindar desse tipo de coisa, sabe? É fácil guardar o collant no fundo da última gaveta e seguir a vida exclusivamente com danças secretas em frente à pia enquanto lavamos a louça.

Os sonhos que escondemos, quando não acreditamos que somos pessoas capazes de realizá-los, nos tornam pessoas que nunca poderiam tê-los realizados. Mas eu fui bailarina. Não porque ele me ajudou a acreditar que era, mas porque era mesmo quando não sabia que estava sendo.

Os relacionamentos são um eterno collant rosa de costas expostas. Eles nos fortalecem pra sermos as pessoas que sempre fomos, tiram nossas defesas e permitem que as pessoas explorem partes nossas que sempre estiveram escondidas. A vulnerabilidade é o que permite que os lábios do outro encontrem minha espinha enquanto eu acredito em mim o bastante pra saber que sou mais que alguém que vai chegar lá com o treino, mas alguém que já é.

E, sim, alguns deles terminam, outros nem tem a chance de começar e há tantos outros que ensaiaram pra ir mas nunca chegaram a se apresentar num palco. Quem dita o ritmo, a dança e a melodia somos nós, e mesmo quando não sabemos quão precioso e transformador é o espetáculo, vale o bilhete e os ensaios e tudo que se esconde nas coxias e bastidores, encontrar pessoas, outros que bailam por aí em silêncio, que sejam apenas sensíveis e vulneráveis o bastante pra nos lembrar das magias em ainda ser capaz de dançar, e vestir um collant rosa que há tanto tempo ficou numa gaveta, com medo de mostrar minhas costas nuas.