De um relógio parado em que o tempo decidiu seguir

Dia 20 de fevereiro de 2021
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Sobre Textos

Pensei que se não falasse nada por um tempo eventualmente poderia finalmente falar sobre outra coisa, mas não. Aqui estamos há todos esses meses sentindo e pensando as mesmas coisas em diferentes momentos e em intensidades distintas – o que torna todos os sentimentos completamente diferentes.

Achei que podia, sabe como é, esperar algum momento de aleatoriedade e – por que não – descuido pra vê-la. Você sabe, A Felicidade. Pensei que estivesse logo ali na esquina, dei um suspiro e passei um café – mas ainda sem poder sentar-me à calçada. Ela não apareceu, e eu o bebi todo sozinha; o café, digo. E fiz de tudo, principalmente esperar.

Não é possível essa bendita estar tão atrasada. Contei horas inteira, quase uma volta ao redor do sol, pra ser sincera, e nada. Já é meu terceiro aniversário em isolamento e mesmo que quase ninguém tenha nada a ver com isso seguem me perguntando por quê mudei.

Gostaria de responder – quase sempre gostaria de ter essa resposta. Mas temo que em geral eu também esteja buscando-a – e chego tão perto de saber às vezes. Mas ter certeza hoje em dia é que é o verdadeiro descuido, não se pode contar muito com isso, então me sobra esperar que saibam que é preciso ter um tipo de coração forte pra passar três aniversários completamente sozinha e ainda sentir que todas aquelas pessoas que antes podiam ir à minha casa comer bolo, podem me amar por completo mares ou rodovias inteiras de distância. Mas não são todas aquelas pessoas, na realidade são algumas, uma porção bem pequena delas e a cada dia entendo melhor.

É preciso que me amem muito desde quando eu era capaz de falar sobre todas as coisas, para então com alguma dedicação entender todos os silêncio que me sequestraram por todo esse tempo – e muitos dos quais ainda sou refém. Nem todo mundo tem isso em si, sabe como é, amar alguém descuidada como eu – e quando eles tem ou não tem isso neles a vida ainda segue, e ainda se precisa de amor.

Mais frequentemente agora do que nunca volto a abrir o baú das cartas.

Toda essa resposta que buscam de mim – e que eventualmente eu mesma volto a buscar – está recortada em colagens, glitter, bilhetes de cinema, assinatura e confissões feitas em pedaços de papel, vidros de perfume e miçangas de pulseiras que cuidadosamente guardei para me lembrar. Mas eu não sabia que doeria lembrar disso, guardei porque achei que também isso faria com que ela viesse mais rápido; você sabe, A Felicidade.

Não é difícil guardar as cartas para evitar que se desfaçam com meu pranto. Não sou páreo para elas. Não sou páreo para Ela – a autora destemida que as guardou.

Presumo que o silêncio que se perpetua cada vez mais é também uma proteção para aquela que vier depois de mim. Um dia talvez esse hoje me doa pela sua ausência, mesmo que eu não saiba agora – mas acho que não, não são todas as fases que nos abraçam em saudosismo.

Acredito em mim com toda a força do que me sobrou pra ser – nem sempre é muito, mas quase sempre dá pra… sei lá o quê, exatamente – e ainda gostaria que houvessem mais bilhetes na caixa. Talvez eu pudesse ter ido ao cinema mais vezes, ou carimbado mais meu passaporte ou rasgado mais folhas de anotações do caderno de geografia onde anotei as iniciais de um cara que amei mais de uma década atrás. Mas é que há uma linha tênue entre tudo que fiz achando que era o suficiente, e tudo que ainda não consigo fazer mesmo sabendo que só então vai bastar.

São poucas as memórias da vigésima sexta volta ao sol e inevitavelmente a estrada que não tomei surge no horizonte distante que hoje eu jamais posso alcançar – e enquanto eu espero por ela, A Felicidade, mais intangível se torna a encruzilhada que dobrei a direita por não saber direito onde estava indo.

Essa aqui é uma delas. Das memórias da vigésima sexta volta ao redor do sol; não foi uma das boas, embora nem de longe tenha sido a pior. Espero ainda ter oportunidades para dar ao descuido a chance de trazê-la aqui pois aprendi alguns milhares de quilômetros atrás, em outro trajeto me revolvendo em torno do centro da galáxia, que é quando não se espera que ela chega. Não pode estar atrasada, então, se sua hora é quando lhe dou folga.

Todo esse silêncio que também redigi consegue gritar, mas não levei muita coisa além da velha caixa que mesmo aqui me acompanha. E quem a escreveu, com cada letra, e cada lágrima, com todos os fragmentos dos muitos corações partidos que ainda preenchem o meu, com papel tinta e sangue, ela sabia: não está escrito.

“Felicidade se acha é em Horinhas de Descuido.”

É por isso que mesmo quando o relógio para o tempo continua a correr; é ele que sabe muito bem onde ela está, e é ele que brinca de corre-cotia com ela, esperando entre as horas quebradas de ponteiros parados, a hora de ser pego por ela.

Nunca posso adiantar o relógio o suficiente, e puxa vida! quantas vezes eu tentei!

O tempo parou, eu sei. Não é de agora, já faz tanto tempo que eu sequer me lembro como era correr com ele ao meu lado, ao invés de tentar correr para alcançá-lo. Mesmo que ele esteja congelado naqueles dias. Mas sei o que ele espera de mim – não quer que eu dê corda mais, é pra deixar o relógio quebrado e parado, é pra não contar os minutos, é pra sentar na calçada com o café mesmo sem saber ao certo se ela – você já sabe quem estamos aguardando – vem.

Pensei em não contar nada disso. Pensei, porque é o que acontece no silêncio. O tempo leva embora o silêncio tanto quanto leva embora a voz que um dia eu pude distribuir e reverberar mundo afora, a diferença é que quando conto aqui tudo isso, encho a velha caixa um pouco mais, e com isso recupero ela – uma pequena parte dela. Aquela para quem nunca serei páreo, pois a que abre a caixa para ler nunca é tão corajosa quanto a que a abre para registrar tanto corte, sangue e dor.

Gritei tantas vezes, e ainda me levou treze anos, desde a primeira carta até aqui, para entender quanta coragem existe em não dizer nada. – a autora destemida é também aquela que escolheu o que guardar.

Não há mais corda para dar no relógio. Que ele volte a correr quando souber que é hora. É que eu agora sei de tantas coisas que nunca pude entender antes: quando o relógio está parado o tempo ainda corre por si mesmo em um ritmo descompassado que eu não aprendi a dançar, e o ponteiro quebrado não pode impedir que o tempo a traga até aqui; A Felicidade; é a dança que eles fazem. Ela e ele no corre-cotia do descuido.

Eu não sou aquela destemida remetente mais – o que frequentemente me dói – mas escrevo com a mesma certeza que ela já tinha. Ela sabia: não está escrito. E talvez nunca vai poder estar. O escrever é quase sempre escolher o que não se fala – e só às vezes me parece que o silêncio também tem seu próprio descuido.

  • Thamiris
    dia 20 de fevereiro de 2021

    Amei o texto, Carol! Poético e super me identifiquei nas palavras e na busca que você descreveu.