Letramento do amor

Dia 15 de abril de 2016
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Sobre Textos
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Ah se soubéssemos a fórmula mágica do amor! Que mundo bonito seria esse em que amamos uma pessoa e ela nos ama de volta: andamos de mãos dadas pela praia, rimos descontroladamente até parar de sair som ou até sair água pelo nariz, nos aconchegamos na batida do coração do outro, e o peito se encaixa como se não houvessem duas peças de lego tão perfeitas.

Mas não sabemos.

Quando se convive com crianças tanto quanto eu convivo fica fácil identificar e passar por cima das mancadas da vida. Quando começamos a andar só caímos até que chegou o dia em que nosso peso já não era tão pesado assim e o equilíbrio deu um jeito de nos manter de pé apesar de sentirmo-nos mais confortáveis no chão. As crianças também sofrem pra aprender a ler e escrever. Eu diria que é a parte mais difícil, terminei minha licenciatura sem saber direito como num belo dia um monte de letras vão se amontoar para fazer sentido de palavras. Mas seguimos crescendo, andando apesar das quedas e lendo apesar das palavras diferentes que não conhecemos e precisamos encontrar o significado. As crianças me ensinaram que tudo bem errar.

O amor é como a alfabetização. Não dá para explicar como funciona, como um belo dia você percebe que aqueles pedaços quebrados de sonhos, erros, histórias, qualidades, passado, defeito, bagagem, dor, acertos e esperança se amontoam numa pessoa e ela faz sentido enquanto aquela que você quer ao seu lado até o fim da eternidade.

E escrevemos muito errado, sabe? Leva um tempo até começarmos a entender a nossa própria caligrafia. Não é da noite pro dia que entendemos as nossas próprias palavras, não é da noite pro dia que a nossa história começa a fazer sentido. Tem vezes que queremos apagar tudo e começar de novo, tem dias que a página já está tão borrada que não aguenta a força de mais uma borracha e se rasga. Existem histórias cujos personagens só sofrem, e existem escritores que se cansam da história que escreveram e decidem jogar esse livro fora porque ele parou de fazer sentido.

Eu não sei qual é o momento em que o cérebro faz sentido das letras, tampouco sei qual é o momento em que a história para de ser feliz. O que eu sei é que como não nascemos sabendo andar – é preciso cair – e nem sabendo ler – é preciso errar – também não vamos acertar de primeira no amor, e tudo bem, sabe? É difícil pra uma mente que nunca viu isso antes na vida saber que a voltinha do “q” é para um lado e a do “g” é para o outro. É difícil, leva um tempo até cair a ficha. É difícil, vamos escrever muitos geitos e muitos queigos.

O equilíbrio aparece um dia, quando menos esperamos e nos mostra que dá pra andar sem cair – embora isso não signifique que não haverão buracos na estrada pra nos fazer tropeçar -. É ali, no meio da praça, durante a aula de matemática, o meio do almoço, na hora do desenho que a criança percebe o que é “j” e o que é “g” e a partir daí dificilmente vai errar.

O problema é que ninguém nasce sabendo disso, e a alfabetização é sofrida, lenta e nem sempre resulta em um bom escritor. Mas é importante saber disso: só porque uma história foi mal escrita não quer dizer que ela é ruim. A alfabetização não acontece na mesma velocidade para todas as crianças, não quer dizer que os retardatários não vão aprender nunca, eles só precisam de mais tempo.

Claro, vamos precisar enfrentar palavras desconhecidas, soletrar palavras que nunca lemos antes e isso nos causa uma dúvida, às vezes até erramos porque a intuição foi pro lado errado, ler mil histórias antes de aprendermos como dar voz aos nossos próprios protagonista e alguns escritores vão decidir que um conto de fadas deixou de ser mágico e por isso vão guardá-los para sempre na gaveta dos fracassos. Mas aprendemos.

Achamos que a página vai rasgar da próxima vez que precisar ser apagada, achamos que não é forte o bastante pra aguentar a reescritura da história que aprendemos a escrever, achamos que não aprendemos nada e por isso logo mais adiante a borracha vai precisar entrar em ação novamente, achamos que quando ficar pronta ninguém vai achar essa história boa o suficiente e por isso ela nem merece ser escrita. Achamos que é preciso computador, depois mudamos pra manuscrito, tem gente que só consegue na máquina de escrever. Mas aprender a fazer sentido das pequenas frações pra enxergar a obra completa leva tempo, ler leva muito tempo, escrever demora ainda mais.

Não podemos achar que todas as etapas da história serão tão bonitas quanto como os personagens se conheceram, também não dá pra pular todo o meio até chegar no clímax. Todo livro que se preze precisa passar por um conflito antes de chegar à resolução, mas é por causa deste conflito e do que ele desperta em nós que acontece aquele clique em algum lugar da mente e descobrimos que algumas letras viram pra direita, outras viram pra esquerda e todas elas formam palavras. Só precisamos aprender quais palavras formam as melhores histórias, mas o escritor sabe, que como no amor, todas as histórias valem a pena – elas só precisam de alguém que saiba como escrevê-las.