Não é um texto sobre gratidão em 2020 – é um texto imenso sobre muitas verdades desagradáveis na pandemia

Dia 30 de dezembro de 2020
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Já vivi o ano mais difícil da minha vida. Foi um ano em que estive muito, muito sozinha, ficava dentro do meu quarto sem ver ninguém, precisei desenvolver novos hobbies e fui forçada a olhar para mim mesma diversas vezes e enxergar todos os meus defeitos. Explorei minha companhia até não aguentar mais – já faz alguns anos.

Não aconteceu em 2020, por isso quando 2020 chegou e confinou cada um em sua própria casa, largados completamente ao silêncio completo do morar sozinho ou à enfurnação constante de dividir uma casa 24h por dia com outras pessoas, eu já estava preparada. Sabia exatamente como estar comigo.

Por um tempo, claro.

Você talvez tenha lido outros relatos que escrevi aqui (1; 2; 3). Mas é sempre quando o silêncio reina e as palavras vão embora que o mundo inteiro e interno se sacodem muito, fazendo sons altos demais na esperança de chamar algumas letras de volta e explicar a minha vida. Isso aqui é sobre tudo, e ainda algumas coisas a mais que a tempestade revirou – e todas as outras que ela jogou pra fora do bote.

Foram cinco meses que estive completamente em paz comigo mesma, trancada na minha casa sem nem ir ao mercado, muito consciente de que havia uma pandemia assolando o mundo e matando muitas pessoas todos os dias; deixando inúmeras famílias sem pais e mães, e enterrando de caixão fechado num cemitério sem velório vovós e entes queridos – mesmo os saudáveis, mesmo os jovens, mesmo pessoas como eu.

Os outros cinco meses? Não sei como explicá-los. Sobrevivi a eles, apenas. E não sei sequer se posso começar a pontuar tantas coisas que aprendi devido a isso. Não quero falar sobre ressignificar, não foi bonito o que aconteceu – o que está acontecendo.

Não foi opcional, não tem lado bom em ver 63 vezes o número de pessoas que morreram nos atentados de 11 de Setembro em Nova Iorque morrendo no Brasil por covid – ou mais pessoas do que Hiroshima e Nagasaki somados. Se a segunda guerra mundial dizimou 3% da população mundial, não sei onde pode ser considerado normal naturalizar as 193 mil mortes por covid num país de 208 milhões de habitantes.

Constatar o horror dessas perdas e a frieza sobre o caso todo, bem como o peso de lidar com o trabalho, me fez não ter vontade de ir a encontros entre amigos. Sinto muito a todos que decepcionei por terem expectativas sobre mim que não correspondem a quem eu sou, mas não combina com quem eu sou viver minha vida normalmente e me alienar da situação completa de caos que estamos vivendo.

Essa aqui sou eu, suponho que se esteja sabendo disso agora não seja exatamente um prazer me conhecer. A dor das pessoas dói em mim e sempre fui do tipo que dá tudo que tem pra ajudar de qualquer forma que fosse possível. As pessoas não reparam nisso quando elas é que estão sendo ajudadas, mas parece polêmico quando em prol de ajudar terceiros preciso fazer algumas concessões que as afetam.

Vou ser muito delicada aqui e espero que entendam – embora não possa de fato garantir que não serei mal interpretada, geralmente quando sou sincera demais, sou – sei que as pessoas tem maneiras diferentes de lidarem com pressões e dificuldades. Não espero que todos ao meu redor falem sobre sorte e gratidão, tampouco falo eu somente disso. Sei a importância de desabafar e dividir pesos entre muitos ombros, faço isso. Mas não sou adepta da reclamação e não me satisfaço em ligar para alguém e dar apenas notícias horríveis – e por muitos meses tive apenas tragédias para contar, por isso não liguei.

Desejo a todos que puderam seguir suas vidas que sigam. São sim afortunados, eu inclusive. Mas não vou me desculpar por ter me distanciado de algumas pessoas e cumprido regras de sobrevivência. Como uma pessoa que se muda muito de casa e cidade eu já vivi momentos de perceber qual o tipo da importância as pessoas dão à minha amizade quando não estou presente.

Já fui pra outro país e me distanciei de muitas pessoas por inúmeros motivos diferentes, mas nunca como agora. Quando você se muda ou viaja, fica vários meses ou anos fora, você tem – ou geralmente tem – a opção de voltar. Estar confinada numa casa de 30m quadrados completamente sozinha trabalhando mais de 14 horas por dia quase todos os dias, em outra cidade, com pavor mortal de colocar o pé no passeio e morrer não foi exatamente uma escolha. Não sei como ser mais clara sobre isso para aqueles que talvez não entenderam ainda.

Então, vou falar sobre os fatos agora. Sei que algumas pessoas continuaram trabalhando “normalmente”, pegando ônibus ou seus carros e dirigindo-se a uma empresa onde fingiam que nada estava acontecendo e então sentavam-se em seus computadores e digitavam números e letras também fingindo que não tinham 12 mil pessoas morrendo num dia só, e essas pessoas tem ainda seus próprios problemas. Mas não foi meu caso, e aqui falo quase inteiramente apenas de coisas que experienciei.

Falei que não achava que ressignificar era a palavra certa e aqui está o motivo: não ressignificamos as coisas, elas se ressignificaram sozinhas e se impuseram como eram. Falhamos e seguimos falhando todas as vezes que tentamos molda-las para o que não são e contornar para o que desejamos que elas fossem, ignorando tudo que sabemos e vemos. Meu trabalho foi ressignificado e isso mudou minha vida completamente. Estive exausta, varando noites sem dormir por pura exaustão, olhando para um computador sem ver o dia virar noite e vice e versa. Não quis ligar para alguém para falar sobre as dificuldades disso pois está mais do que claro que foi insuportavelmente difícil ser forçada a viver essa realidade que nunca escolhi.

Sim, ainda sou grata por ter um emprego, mas não significa que porque o tenho ele seja o melhor emprego do mundo e livre de dificuldades. Foi, muito difícil e gastei todas as minhas energias me adaptando a isso, por isso não tenho energias para dispor em chateações mínimas de pessoas que por opção decidiram ver todos os fatos que apresento aqui de forma completamente diferente.

Eu não tenho energia para me explicar, entenda, isso não é uma explicação. Quero apresentar os fatos e então você pode tirar suas conclusões sobre isso, eu sempre parto dos fatos. Aqui estão eles: as pessoas estão morrendo, ninguém está fazendo nada para impedir ou conter isso – nem o governo, numa canseira sem fim de não ligar para absolutamente nada, a qual já estava mais que declarado desde 2018 que era completamente incapaz de governar um país – nem você que muito cansado do dia de trabalho foi assim que os comércios abriram beber 3x por semana no seu bar favorito em favor da sua saúde mental e então sentar-se à mesa para o almoço no dia seguinte com a sua família.

O fato de que as pessoas estão morrendo e ninguém faz nada sobre isso me faz querer fazer o mínimo, que é evitar tanto quanto possível de ser um vetor de contaminação para alguém que pode morrer por minha causa. Já vivi o ano mais difícil da minha vida. Tem alguns anos e nele fiquei completamente cercada de pessoas e mais introspectiva do que nunca estive. Fiz muita corrida nesse ano, ioga, circo. Escrevi um livro e muitas cartas. Chorei muito, saí com meus amigos, bebi e conversei. Beijei garotos, ri demais, me apaixonei e fiz planos. Não foi em 2020.

2020 foi o ano do silêncio para mim. Coisas demais acontecendo para eu tentar falar mais alto. Mandei muitas mensagens para amigos nos primeiros cinco meses em que eu estava em paz e no eixo. Perguntei como estavam, perguntei como estavam lidando, o que estavam fazendo, como estava suas famílias, seus trabalhos, seus parceiros. Depois não mandei mais, não porque deixei de me importar com isso – certamente ainda me importo – mas porque posso contar nos dedos quantas pessoas me perguntaram como eu estava, foram cinco. Me saturei de todas as redes sociais, entrei num estado de não suportar olhar o WhatsApp e por muitos meses fiquei sem Instagram, perdi contato com todas as pessoas que pautavam sua relação comigo em estar sempre disponível, bem e pronta para um encontro e evento amigável e agradável.

Estava completamente sozinha em outra cidade num apartamento de 30m quadrados que não pega sol e do qual não saí por muitos e muitos meses. Sem ver ninguém, nem meu vizinho, nem a atendente do caixa do supermercado, trabalhando quase 14h por dia em um trabalho que eu nunca tinha feito antes – foi ressignificado e então caiu no meu colo daquela forma. Foi horrível e não havia nada para fazer sobre isso, era o que era e era preciso viver isso. Vivi. Isso aqui não é uma explicação, não posso sequer começar a contar o que vivi no maior confinamento não televisionado e sem prêmio da vida.

Quando o modo sobrevivência é ativado – seja por qual motivo que for, pandemia ou não – você não ressignifica as coisas. Você define prioridades porque a vida te mostra que é impossível ter 20 amigos próximos, cuidar da sua saúde física, mental, emocional e espiritual, falar com a sua família – e ter a cabeça no lugar o suficiente para não ser arrastado para os milhares de problemas deles – e cuidar dos seus sonhos, do seu coração, de quem você vai se tornar. Você ainda vai precisar construir seu futuro, mesmo agora, mesmo enquanto sobreviver, porque em todo o tempo antes de morrer tem um amanhã e você pode determinar algumas (pequenas) coisas sobre esse amanhã.

Recapitulando, então. Vamos? Pessoas morreram, o trabalho estava muito difícil mas ainda feliz por tê-lo, não quis me explicar ou dizer coisas extremamente óbvias e viver reclamando, por isso gastei toda minha energia trabalhando e aprendendo a lidar com tudo de novo que caiu no meu colo sem minha escolha ao mesmo tempo que tentava não matar ninguém para aumentar a taxa de mortes 63 vezes maior que o 11 de Setembro.

Neste meio tempo engordei 11 quilos, chegando ao nível de obesidade que nunca havia atingido na vida, o que é ainda muito difícil para eu aceitar. Estou trabalhando nisso há 3 semanas, quando comecei a ter energia o suficiente para voltar a fazer corrida – que gosto muito. Pretendo emagrecer 15 quilos nos próximos 5 meses, volto aqui para conta caso consigo, que tal? Certo, ainda estava recapitulando, deixe-me ver.

Ah, sim. Me afastei de algumas pessoas nesse processo muito introspectivo. Todas aquelas que nenhuma vez me perguntaram como eu estava ou que disseram que minha opinião não solicitada carregava muitos dados e informações desnecessárias – não lamento por dizer que as pessoas estão morrendo e quem colabora pra isso é também culpado, não seja um filho da puta mimado que não aceita repreensões e vá se informar, alecrim dourado. Mesmo nessa minha jornada de 5 meses de sobrevivência e introspecção eu não fui perfeita, o que te leva a pensar que você foi e é apenas uma vítima de todo o horror do mundo? Somos todos, bem vindo ao clube, pegue um assento!

Como eu disse, esse texto é longo e desagradável – bem como o ano ao qual ele diz respeito. Não tenho coisas muito legais para dizer, além de que sou grata pelo meu emprego difícil, com horários bizarros e pessoas malucas que nunca escutam o que eu digo e querem que tudo seja feito no tempo delas e da forma delas. Estou pagando minhas contas através dele, e nesse momento isso é mais do que o suficiente, está ainda, com todas as dificuldades, dentro do plano. Também nunca achei que era absolutamente necessário amar o que se faz. As vezes um emprego é só um emprego e existe toda sua vida para além disso – se for seu caso, aceite que ele vai ser muito mais difícil por você não o amá-lo e que em tudo há dificuldades e faça sua escolha.

O plano mudou muito, mas ele ainda existe e ele é mais do que apenas sobreviver.

Sou muito grata aos cinco amigos que também estava lidando com tudo isso que relatei aqui tanto quanto eu e se lembraram de mim, da minha solidão e possíveis dificuldades em terra estrangeira e me abordaram para perguntar como eu estava e se precisava de alguma coisa. Muitas vezes estava bem, tantas outras não estava e em todas precisava de mim mesma para cuidar de mim – o que também não fiz de forma exemplar se você olhar os 11 quilos e a obesidade que ganhei nos últimos cinco meses do modo sobrevivência.

Mais grata ainda pelos tantos outros amigos que não necessariamente falaram comigo sobre como eu estava, mas que permaneceram na minha vida me mandando coisas e falando do dia a dia sem tanto peso ou pretensão de estar bem, ser próximo ou dar conta de tudo. As vezes funciona falar sobre um filme ruim quando o mundo tá ruindo e você tá na merda.

Eu sei, eu sei. Não era pra ser um texto sobre gratidão. Entenda, se você chegou até aqui é porque vai mesmo ler o que eu tiver para dizer, portanto siga em frente, estamos quase.

Sou grata por ter mantido minhas metas de longo prazo em mente, mesmo quando todas as de curto prazo foram pelo ralo. Me levou 6 meses a mais do que eu imaginei que levaria para me estabilizar financeiramente mas com muitas concessões e dificuldades também geradas pela pandemia, eu consegui. Sou grata por ter essas metas, por me conhecer o suficiente para saber onde quero chegar. O plano mudou muito, mas ele ainda existe e ele é mais do que apenas sobreviver.

Não poderia terminar esse texto sem falar sobre Cristo. Este blog não é religioso, mas eu não me calo nunca para falar de Jesus. Ele foi a maior – e por vezes exclusiva – fonte de energia que tive. Se você está com dor, angústia, depressão, tristezas imensuráveis, coração partido e perdido sobre o que fazer e como fazer, saiba que além de um programa de assistência para a sua mente, você também pode ter ajuda espiritual quando olhando para Ele, que em nenhum entre os cinco primeiros meses em que estive bem ou os últimos cinco em que apenas sobrevivi, me abandonou – ou abandonará você se decidir recorrer a Ele. Jesus não nos abençoa, andar com Ele já é a maior benção que podemos ter.

Isso aqui é sobre tudo, e ainda algumas coisas a mais. Vou falar sobre todas as outras ainda porque sei que tem motivos para sorrir, e sempre tem muitos outros para chorar. A vida é o bom no ruim e o ruim no bom, e sempre vai ser assim. Não vai nunca chegar um momento de não faltar nada que queremos, bem como o momento em que tudo parece faltar também não dura para sempre.

Não estou aqui para ressignificar a gratidão, julgar quem reclamou, ou até quem saiu, foi à festas e bares e viveu “como se nada tivesse acontecendo”. Estou aqui, como sempre estive, para falar do que vivi, e dividir isso. Faltam 36 horas para 2021, mas uma certa paz sobre tanto caos que já passou é saber que não importa o quando ou como, o onde ou por quê, eu sempre vou encontrar formas de falar sobre o que vivi, e dividir isso. Vai ficar quem se interessar por isso, nunca escondi meus pontos de vistas porque geralmente eles conduzem minha vida, me fazem quem eu sou.

Você já sabe o que vai fazer daqui 36h? Eu desejo que você possa encontrar formas para viver mais do que sobreviver, eu espero que você possa ter forças (que não vão aparecer sempre, elas vem e vão!) para cuidar de você, descobrir seus sonhos e se manter, mesmo que muito devagar, num caminho para encontrá-los, realizá-los. Eu sugiro um papel e uma caneta. Nada que não esteja escrito pode jamais se realizar, é o motivo pelo qual as palavras existem – aqui, no entanto, não olhamos para trás por muito tempo, continuamos seguindo em frente.

Sei que enquanto navegar haverão outras tempestades – é que eu seria incapaz de não me lançar no alto-mar, tão dolorosa, introspectiva, e silenciosa quanto possa ser a jornada, ela é necessária. Se esse foi o ano mais difícil da sua vida, ele agora já acabou, e ele não leva embora nada de bom ou ruim que você possa ter trazido até aqui. Quem escolhe, quem faz a viagem no barco, o que levar na jornada, e para onde ela vai, é você, e as vezes dá só pra sobreviver. Mas as vezes dá pra se lembrar de tudo que sonhamos quando empurramos o barco na água e partimos. O horizonte ainda esconde muitas possibilidades, para os sobreviventes – sim! – mas também para os marinheiros, todos os navegantes, e, principalmente, para o capitão.

Mesmo quando o barco é destruído e completamente jogado nas rochas, e então naufragado e você se vê no meio da tempestade com uma única bóia meio murcha e muito frio, mesmo apenas sobrevivendo, você ainda é o capitão. Bon voyage!

Olha, veja, aquilo é um farol?

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Eu fiz uma lista sobre 4 textos que queria falar sobre numa ótica da pandemia: os relacionamentos, o trabalho, o nosso eu, e o medo. Acho que consegui cobrir boa parte destes temas em um texto só, por isso o tamanho, são 3 textos em um. Caso tenha chegado até aqui lembre-se de me deixar um alôzinho nos comentários, eu falo muito, mas também amo ouvir.

com amor,
sempre com muito amor,
c