uma estante menos torta que meu coração

Dia 8 de março de 2020
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Sobre Textos

Eu perguntei o que você estava pensando só porque sou realmente muito curiosa. Nem vale a pena dizer que eu já sabia; estava escrito nessa sua cara risonha. O que vale a pena dizer aqui é que levei o maior susto do mundo quando ouvi as palavras saírem da sua boca. Não achei que você fosse dizer de verdade, achei que inventaria qualquer coisa; falaria sobre o tempo, sobre o trabalho ou sobre política.

Eu falei sobre a estante, que era bem curiosa para o meu gosto, e você riu dizendo que já pensara sobre a estranhice dela algumas vezes. Eu ri do tanto que aquilo parecia normal apesar de ser a coisa mais estranha do mundo que eu estivesse ali deitada na sua cama às três da manhã em um dia de semana. Era a coisa mais estranha do mundo que eu estivesse ali com você, e parecia a coisa certa. Parecia encaixar.

Não posso reclamar que nunca tive cafés da manhã. Eu tive. Tive cereal e bolo, leite com chocolate e frutas. Dentre as várias coisas que tive, tive muito carinho. Sua presença constante na minha vida é como um redemoinho que tira tudo do lugar e quando vai embora deixa uma bagunça e um vazio para trás. Mas eu tive várias coisas das quais posso me lembrar. 

Houveram noites frias em que seus pés me esquentaram, e momentos de tensão em que você se aproximou de mim com a respiração lenta e pesada como se pensasse se realmente queria mudar tudo entre nós. Você mudou.

Era notável que tu não conseguia olhar pra mim sem querer me beijar, e eu não conseguia te olhar sem saber disso, mas a gente continuava arriscando todas as coisas e jogando vários bilhetes por ai até que um deles fosse sorteado no ar.

Poderia ter durado um minuto ou dez, eu não saberia dizer. Ao contrário do que eu imaginei não teve nenhuma música tocando no fundo, só o som da sua respiração. Eu tive isso, e vou me lembrar todos os dias enquanto você não voltar aqui pra buscar a saudades que deixou. Se fecho os olhos eu me lembro da minha própria respiração naquele momento e não sei o que mais pensar. Eu tinha medo de querer.

E quis. Cada minuto que tive eu quis. Achei que o medo fosse me impedir, me bloquear de seguir adiante e me proteger do quanto era forte tudo que você representava pra mim, mas não impediu, se qualquer coisa o que ele fez foi quebrar minhas defesas pra mostrar que apenas o que queremos muito grita pra além do abismo do medo e volta com eco até que sejamos capazes de ouvir nossa própria voz pedindo pelo que tem além do vazio.

Você me aconchegou no seu peito e me fez ficar ali acolhida até que eu conseguisse respirar normalmente, fez carinho nos meus cabelos e me abraçou, como a gente fazia quando éramos amigos. Não que agora não sejamos amigos, esse tipo de gente tipo você e eu continua amigo independente do que sucede entre eles.

Você me fez te querer desde o primeiro momento que eu te vi, todo risonho e alegre, com grandes olhos castanhos e os cabelos pretos que se curvavam pelos olhos impedindo seus olhos de encontrar os meus. Você me fez achar que a gente ia ser só amigo e que não tinha nenhuma fagulha de nada mais entre nós. Mas era mentira, a fagulha cresceu tanto que me queimou. 

Não sou domadora de chamas, mas não posso negar os sorrisos que tive, as conversas gostosas e o carinho que a gente desenvolveu. Eu não faço ideia do que vai acontecer conosco, mas fico feliz em pensar que vamos continuar sendo apenas nós, sem qualquer pretensão de ser qualquer outra coisa – já me basta em ter apenas seu sorriso por perto, menos torto que a estante quase tombando a parede naquela madrugada de terça-feira em que te perguntei o que você estava pensando mesmo que eu já soubesse a resposta.