vida após a morte, ou, “porque a minha avó esteve errada a vida toda”, ou ainda “a segunda carta pro meu pai” – não leia se for da minha família (é sério!)

Dia 10 de junho de 2019
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Sobre Textos

Você foi avisado. Siga por sua própria conta e risco. A verdade que trago aqui vai te doer. Não porque é a minha verdade, se fosse doeria só em mim. Mas exatamente por ser nossa. A produção gostaria de informar que nenhum relacionamento familiar foi ferido ou morto na produção desse texto; já estavam mortos antes.

Há um ano e quatro meses eu escrevi uma carta para o meu pai. Eu estava num carro com mais quatro pessoas voltando de uma viagem relativamente estressante com meus tios favoritos – que são incríveis, e mais incríveis ainda se você não precisa passar 3 dias dirigindo pelo norte de Minas num carro quebrado que para a cada 5 metros por 1333 km.

Essa viagem mudou muitas coisas na minha vida, como é o costume e propósito de viagens importantes. Eu soube, por exemplo, que meu tio – a quem eu amo muito desde novinha – grita com a mulher dele quando ele está irritado e manda ela calar a boca para que não o estresse mais. Essa é uma pessoa que conhece Cristo e diz viver o evangelho (o que segue nos mostrando que falar sobre o evangelho e frequentar a igreja de Cristo na terra é muito diferente de viver o evangelho e ser igreja de Cristo na terra). É, sim, uma pessoa muito amorosa – quando lhe convém, quando o humor permite – de muita caridade, com uma história incansável de lutas e perdas e vitórias e desafios que eu não posso nem começar a entender, e, no entanto, no momento em que as coisas apertam, ele se esquece do juramento do casamento, se esquece do voto de serem um e coloca a opinião dele muito acima da dela, e a humilha de diversas formas. 

Minha tia é uma das top 5 mulheres mais incríveis que eu já conheci. Carinhosa, esposa dedicada, fez um compromisso e escolheu honrá-lo, criou bem seus filhos apesar e além de todas as dificuldades de casa, trabalha dois turnos, faz a maior parte do serviço da casa, deve ter um relacionamento muito forte com Deus para ter todos os dias toda benevolência, discernimento e domínio próprio para lidar com o meu tio. Isso aqui não é, sob nenhum aspecto, uma romantização da esposa submissa, recatada e do lar, tenho certeza que minha tia está exausta. O que isso aqui é, sim, é uma elucidação sobre como a família é, sempre foi, e, enquanto nós não falarmos sobre isso seguirá permanecendo, o maior relacionamento abusivo de todas as nossas vidas; o qual comumente só escapamos em morte; e há muitas receitas para o homicídio; tantas outras mais para o suicídio.

Eu escrevi aquela carta para o meu pai chorando no banco de trás do carro dos meus tios, sabendo que minha tia via constantemente o que há de pior em seu esposo e ainda que isso a ferisse por diversas vezes, ainda que ela não concordasse com tantas posturas, ela escolhia passar por cima dos ossos secos e do cemitério e encher de vida uma relação que na mão de muitas outras pessoas já estaria morta. Eu não escrevo esse texto de forma alguma para julgá-la, porque eu acho que os motivos dela são além do que eu posso compreender, e embora eu não precise compreender tudo, eu respeito muito ela, respeito mais do que a minha opinião nunca pedida, respeito mais do que meu discurso feminista que muita gente parece acreditar que é o mesmo que morte aos homens e mulheres no poder. Eu acredito na capacidade da minha tia de escolher diariamente a vida que ela quer viver, e eu a apoio indiretamente em sua decisão, mesmo sendo completamente diferente de uma decisão que eu talvez tomasse, se colocada em situações semelhantes, pois a única vez que um homem sem ser meu pai levantou a voz para mim, eu terminei um relacionamento de oito anos e nunca mais olhei para trás.

Esse meu tio, veja bem, foi criado por uma mulher muito forte. Uma mulher que viu seu esposo chegar bêbado muitas noites, que lavava trouxas e mais trouxas de roupas para fora para alimentar os filhos, que sofreu sozinha porque era o costume da época. Minha tia teve uma opção em continuar com meu tio que a sogra dela nunca teve. Na época da minha avó as mulheres ficavam casadas porque era o certo a se fazer independente dos motivos e de quantos e quantos sapos engoliam; tantos que chegavam a sufocar em silêncio ou pelo silêncio serem sufocadas. Foi também a mãe do meu tio que criou a irmã dele: a minha mãe.

Dois filhos do mesmo pai, da mesma mãe, separados no nascimento por 11 meses e diferentes cores de balões no chá de revelação – se tivesse tido algum há 55 anos atrás – morando na mesma casa, crescidos com privilégios e visões de mundo completamente diferentes. Meu tio foi amado, a ele foi dado tudo – inclusive escolhas; abraços; confiança e opções. Minha mãe não foi criada, ela foi treinada. São coisas muito diferentes criar uma criança e treinar uma criança. Especialmente se a criança tem uma vagina no lugar de um pinto. Especialmente se a criança com vagina no lugar do pinto nasceu há meio século.

Por causa do treinamento da minha mãe e a minha recusa em segui-lo, ela e eu tivemos um relacionamento conflituoso pela maior parte da vida. “A Carolina é muito desaforada”, minha mãe ouviu muitas vezes, inclusive do irmão dela, inclusive da mãe dela “A sua filha tem a personalidade meio forte, né? Filho meu não fala comigo assim.”, “Meio esquentadinha a Carol, ein?”, “Topetuda essa menina sua.” Vindo de uma família de treinadores e treinados, eu tive uma escolha inconsciente ainda muito jovem, de ser acolhida e fazer parte do treino, ou ser meio ovelha negra, minha própria cabeça, rejeitar o treinamento e abraçar a mim mesma.

O curioso é que mesmo sendo completamente diferente de tudo que eles achavam que era certo, de tudo que eles treinaram e foram treinados para ser, a família da minha avó materna sempre me amou muito (talvez menos depois desse texto, mas pelo menos eu avisei no título). Talvez com um olhar encantado e curioso de quem vê um leão passar no meio do aro de fogo no circo, talvez com uma pulga atrás da orelha sobre como foi que o treinamento falhou tanto a ponto de produzir alguém como eu, talvez como uma forma de me conquistar pelo amor ao invés de pela imposição que reuniu muitas outras antes de mim mas falhou quando foi a minha vez. Eu não sei qual foi o motivo, mas eu fui amada, a mim foi dado tudo – inclusive escolhas; abraços; confiança e opções, eu tenho uma coisa que eu nunca fiz nada para merecer, uma coisa que a minha mãe passou a vida polindo azulejos do banheiro com a escova de dentes para que ela tivesse, uma coisa que a irmã da minha mãe passou a vida lavando a louça depois do almoço e ariando o fogão e passando o palito de dente em cada quina e buraco para garantir que nenhum grão de arroz ficaria para trás, e mesmo com todo esse esforço elas falharam em ter: eu sou admirada.

A admiração gera respeito.

É muito difícil amar alguém que você não admira. Talvez não seja só difícil, mas impossível, porque não há amor sem respeito, e o que gera o respeito, um pequeno feto crescendo semana após semana, uma semente que se rega ou se tole, é a admiração. E eu não sei como, mas ter rejeitado o treinamento me fez ter tudo que o treinamento castrava, sem que eu nunca tivesse que me esforçar pra ter, eu só fui eu mesma por toda a vida, como eu sou agora escrevendo esse texto, e não posso ser menos do que isso.

O meu pai, como eu descrevi aqui muito verdadeiramente na primeira vez em que falei sobre ele, foi – até hoje – uma pessoa que eu admirei, respeitei e amei muito. Na minha adolescência chegava a causar um conflito, pois eu conhecia pais horríveis para as minhas amigas, pais que nunca as visitavam, ou se moravam juntos nunca as abraçava, ou se as abraçava batiam logo em sequência. Eram muitas as variáveis dos pais de terceiros, mas o resultado geral da equação é que eu sempre tive o melhor pai do mundo. Não era, no entanto, e nunca foi – embora ninguém, muito menos a minha avó, sogra dele, saiba disso – o melhor marido do mundo. 

É preciso ser um bom homem para ser um bom marido, tanto quanto é preciso ser um bom homem para ser um bom pai, mas ser um bom pai – e portanto um bom homem – não gera automaticamente uma medalha com um certificado de bom marido, porque não são duas funções correlacionadas. As pessoas do treinamento não têm essa aula. Minha avó não soube disso, porque o marido dela foi por um tempo um homem ruim e pai ruim e posteriormente um homem bom e um pai ainda melhor. O filho dela, meu tio, é um filho excelente, um tio fantástico e um esposo explosivo, um pai general (e não falo isso como sua sobrinha oferecendo uma opinião topetuda com a minha forte personalidade, mas pelos relatos de sua esposa e filhos). O meu pai foi um pai bom, e a minha avó sabe disso, mas parece achar até os dias de hoje – vide a necessidade desse texto, com o qual abro mão de admiração, respeito e amor que nunca fiz nada para ter – que o fato de minha irmã e eu termos tido uma vida boa, automaticamente faz com que minha mãe tenha tido uma vida boa. Que o fato de meus primos terem tido uma vida boa, automaticamente faz com que a nora dela tenha tido uma vida boa. Elas não tiveram.


Ou pior, que ela mesma não teve uma vida boa, mas isso é a forma como as coisas são e mais importante que ter uma vida boa é treinar as pessoas para terem, e o processo de chegar lá é aceitando menos do que se merece, sendo silenciada por sapos que nos sufocam enquanto os engolimos e fingindo aos irmãos da igreja no domingo que está tudo ótimo e ter assinado a porra de um contrato um dia significa que nada nunca tem de mudar e precisamos aceitar as pessoas como elas são. A vida boa não é o destino, a vida boa é o tudo entre aqui e o lá. Aceitamos as pessoas pelo que elas são, sim.

Amar? Nem tanto. 

Conviver? Só de longe.

Estou falando sobre família e suas muitas vertentes de abuso nesse texto porque é uma opção mais viável do que socar a parede nesse momento, pois hoje vivo o maior luto que jamais pensei viver. Escrevo esse texto porque me parece uma opção melhor do que cancelar minha linha de telefone e virar ermitã e nunca mais falar com ninguém e também me parece que expor as características do treinamento que eu rejeitei e nunca me fez falta, me colocam numa posição de alertar pessoas que possam estar presas por ele ou sendo treinadas nesse momento. Se não falarmos sobre os relacionamentos familiares abusivos, eles vão continuar existindo, e rendendo fotos lindas na timelinedo facebook no segundo domingo do mês de maio. Pode ser que mesmo falando eles, eles continuem existindo, mas se existirem na superfície de cada um que escolher estar neles sabendo que há outras formas, é diferente do que ficarem porque essa é a única verdade que conhecem no mais profundo de seus seres – eu não posso fingir que as coisas estão bem quando elas não estão, porque porra, elas nunca estiveram! E o fato de lidar com tudo no silêncio não quer dizer que não um conflito, só porque não falamos sobre ele.

Me desculpe a todas as pessoas que mesmo sem citar nomes eu estou indiretamente expondo aqui, mas é muito tarde já pra ignorar essas questões e fingir que o problema não existe torna impossível que ele se resolva.

Quando morre a admiração por alguém é muito difícil respeitar essa pessoa. Quiçá impossível. 

Precisamos parar de julgar e reprovar pessoas que se afastam de terceiros; sejam família ou qualquer título que o terceiro possa ocupar; que as machucam, que as ferem. Aceitar, amar e conviver são três verbos muito diferentes. Você, seja você quem for, não nasceu com um contrato sanguíneo que te prende às pessoas que estão constantemente te treinando e transformando em alguém digno. Que porra é isso? Você pode aceita-los e ainda assim viver longe deles.

O pai incrível que meu pai foi, morreu um dia desses. Porque não tem como ser um bom pai sem ser um bom homem, e meu pai se tornou um homem egocêntrico e desleal nesses últimos um ano e quatro meses desde que eu percorri 1333 km pelo norte de Minas num carro quebrado com um tio explosivo gritando com a mulher dele.

Causa mortis? Orgulho. 

Foi triste de ver, e olha que eu já vi caixões com vítimas de acidente de carro.

O orgulho que o matou, pobrezinho, foi primeiro dos outros que encontraram formas muito diversificadas de se exaltarem e subjugarem ele. Depois o orgulho de si mesmo, que numa tentativa de se libertar de tudo que falaram que ele não era, que não conseguiria, que nunca conquistaria e jamais teria, se tornou o opressor que o oprimiu por toda a vida. Meu pai, o próprio libertador que cortou as correntes do treinamento que a família da minha mãe tentou algemar em mim, morreu buscando seu diploma de treinador máster. Apanhou do sistema a vida toda sem nunca ter perdido, e perdeu quando se rendeu para fazer parte dele.

Achei que a minha avó precisasse saber, no fim das contas, que quando um marido sai de casa, não é – como ela disse – porque a mulher fez alguma coisa errada ou não conseguiu segurá-lo. Às vezes é porque ser sozinho e rejeitar o treinamento, rasgar a porra dum contrato num papel, é melhor do que viver toda uma vida de sufocante silêncio e engolindo sapos. Quem não precisa de príncipes não tem que beijar os sapos, quanto mais engoli-los, quanto mais ser engolida por eles. Achei que ela precisava saber, que no fim das contas a minha mãe superou o treinamento que ela recebeu. Porque ela amou meu pai mesmo tendo sido a única em quase três décadas que o conheceu por quem ele era – ou seria, assim que tivesse a menor oportunidade. Meu pai foi tudo por todo o tempo em que não teve nada, e quando começou a conquistar o que nunca precisou se transformou em alguém corrompido pelo vazio dos nadas.

Quando eu via os pais das minhas amigas não indo visita-las, ou não as abraçando, ou as abraçando e depois batendo nelas eu sempre achei que eu tinha o melhor pai do mundo – e como eu fui sortuda por ter tido! – mas como é triste ver as pessoas indo embora e sabendo que elas tinham a opção de ter ficado. 

É tão diferente de quem foi porque não teve jeito. É tão diferente das vítimas de acidente de carro em seus caixões. Porque as pessoas também morrem quando elas matam quem foram para nós. É impossível ser um bom pai sem ser um bom homem, e meu pai percorreu distâncias longínquas em condições tão piores do que um carro quebrado que parava a cada cinco minutos. Percorria oceanos e mares, tempestades e ciclones, enfrentava dragões, leões, fornalhas, nevascas, fome, frio, chuva. Enfrentava minha avó, o treinamento todo e cada um dos treinadores. Falta de energia em casa, falta de gás, falta de reputação, subia e descia tão mais longe do que 1333 km, e fez exatamente o que disse que faria: morreu tentando.

Esse é possivelmente o texto mais sincero que eu já tenha escrito. O mais difícil. O maior texto de amor da minha vida, com o maior coração partido, porque quando as pessoas escolhem se tornar pessoas que precisamos respeitar mas temos a opção, para a nossa própria saúde, em prol dos nossos próprios princípios, de nos afastarmos e elas escolhem mesmo assim, porque o sistema as corrompe de forma a faze-las acreditar que ser parte dele, ser poderoso e admirado no cume de uma montanha totalmente sozinho, é melhor do que a jornada que trilhamos – de fato em péssimas condições, mas juntos – até o pé da montanha. Essa viagem do meu pai pro topo dessa montanha mudou muitas coisas na vida dele, e, por conseguinte, na minha; como é o costume e propósito de viagens importantes.

Não existe amor sem respeito, ou admiração. E quão triste é percorrer tantos e tantos km em terríveis condições, para morrer na praia quando a praia já é a própria vista, e o destino nunca poder ser mais do que o trajeto; quem somos e com quem escolhemos ser; ao longo dele.

Morrer é fácil. Viver é que é difícil. Renascer das cinzas é que é difícil. Ser admirável, leal e abrir mão do que nos oferecem mas nunca importou – apesar do que nos disseram – é que é difícil. Ser alguém que ainda merece uma vida boa, sem ir contra tudo que se ensinou e cultivou enquanto a buscava, é, para alguns a sentença de morte.

Na ocasião em que o homem que eu mais tinha amado, ao longo daqueles oito anos, gritou comigo e eu fui embora, eu não tive dificuldades em não olhar para trás, porque eu sabia que não dava para amar alguém que eu não admirasse ou respeitasse. Sendo esse o texto mais sincero, mais difícil e de maior coração partido que eu já tenha escrito até hoje, pensei que a minha avó precisasse saber que apesar de todos os erros que ela cometeu ao longo da vida, e com tantas acertos tão importantes que moldaram o caráter dos filhos dela tanto quanto ao meu, ela acertou na pior coisa que nenhum de nós nunca quis ver e bateu o pé contra por toda a vida: meu pai acabou não sendo o homem que a minha mãe merecia – embora tenha sim sido enquanto era apenas ele mesmo, morreu tentando ser outra pessoa e sepultou ele mesmo no alto da montanha da admiração de pessoas que não podiam estar se importando menos. 

Ainda é possível que no fim das contas eu devesse trocar o nome desse texto para: meu pai morreu, e eu nem tive a oportunidade de levar flores ou “como a minha avó esteve certa sobre uma coisa mesmo estando errada sobre tantas outras”.

Não sobrou porra nenhum, quando o maior tsunami que enfrentamos depois dos infinitos que vieram antes, foi o capitão do barco quem gerou. Nesse caso eu acho que ainda existe vida após a morte. Só não entendi direito se é pra quem se mata ou quem enterra o defunto. Desculpa, vó, era melhor eu ter ficado calada.

NOTA: todas as pessoas mencionadas nesse texto são importantes para mim e eu reconheço inúmeras características boas suas, embora isso não me impeça de enxergar também alguns erros – o que não me torna, nem hoje, nem nunca, perfeita.