carta às mulheres que apanham dos maridos

Dia 18 de outubro de 2019
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Shannon Dermody

[o conteúdo desse texto é pesado e esse é um aviso de gatilho para qualquer pessoa que não possa lidar com isso ir embora agora. todo esse texto é para te dizer pra ir embora agora!]

Michele Rosa de Jesus (36). Tatiana Spitzer (29). Laís Khouri (48). Élida Maria Seabra (57). Claudete Sampietri (59). Tatiane Kátia Dias (23). Nathalie Rios (37). Karina Tedesco Palmeira (24). Danielle Marques (25). Eloá Cristina Pimentel (15). Fabiane Azevedo Barbosa Dias (36). Maria Domingas Elias de Anunciação (36). Maria da Penha (38). Eliza Samudio (25).

Se você digitar no google “marido matou mulher” esses são alguns poucos nomes entre os mais de 10.300.000 resultados que vão te aparecer em menos de 60 segundos. Todas elas mulheres mortas pela mão de maridos, companheiros ou namorados – exceto Maria da Penha, que sobreviveu paraplégica a tentativa de homicídio de seu marido.

Algumas foram jogadas de sacadas, outras foram queimadas com querosene, gasolina ou álcool. Algumas foram mortas à facadas, outras dadas de comer aos cachorros, algumas foram carregadas em malas até uma segunda localização. Algumas dessas famílias também perderam netos, sobrinhos. Homens que batem e matam mulheres não são exatamente conhecidos por serem pessoas piedosas – apesar de serem bastante dissimulados e convincentes – eles matam quem se interpor no caminho e vão fazer de tudo para não parecer que são culpados, violentos, assassinos.

Karina Tedesco, de 24 anos foi morta pelo marido que já havia sido denunciado por uma ex namorada. Espancada até a morte. Caique matou Tatiane Kátia Dias, de 23 anos, sabendo que ela gerava seu filho, com 5 meses de gestação. Michele, de 36 anos, foi morta e enterrada dentro da própria casa, onde o marido e assassino dela continuou morando enquanto o corpo dela apodrecia debaixo da terra. Nathalie Rios morreu com 36 anos quando contou ao namorado que estava grávida.

Esse não é um texto poético. Não é um texto com uma moral bonita, sobre um assunto não explícito o qual eu vou harmonizar com palavras fresquinhas e imaginativas pra acessar uma camada no seu subconsciente que você nem sabia que tinha. Esse texto aqui é direto. Urgente. Mais do que necessário. Tardio; muitas mulheres precisaram dele antes e ele não existia até então.

Mas tá aqui agora e com ele, vou te dizer Você tem uma chance ainda. Outras não tiveram, você pode fazer diferente delas. Élida Maria Seabra não foi apenas morta pelo seu marido, os dois filhos dela também foram queimados até quase a morte, e depois não resistiram.

Essa não precisa ser a sua história.

Eu sei que pode parecer que você ama o homem que hoje te humilha, diz que você não consegue, não pode viver sem ele. Pode parecer até que ele também te ame, que ele vai mudar, que ele não vai erguer a voz, o punho, a arma, um copo novamente. Que na semana que vem os seus hematomas já terão sarado e ninguém vai se lembrar disso.

Não é verdade. Todas as mulheres mencionadas nesse texto e tantas outras entre as 12 mil mulheres agredidas diariamente no Brasil (números reportados, não reportados são muito mais!) gostariam que você soubesse que você pode sim. Que ele não vai mudar. Que talvez não daqui 15 dias, mas talvez 1 mês ou 2, num ataque de fúria ele não pare onde parou da última vez. Fabiana Azevedo Barbosa Dias e seus dois filhos, um de 6 anos e outro de 11 anos, gostariam que você não tolerasse mais nenhum tapa, mais nenhum grito, mais nenhuma humilhação mais nenhum “você é louca”, ou “me desculpe, eu estava muito nervoso.” Eu tenho certeza que ela gostaria que você fosse embora.

Que você baixasse o aplicativo Mete a Colher para conversar com mulheres que passaram pela mesma situação que você, para te aconselhar, para de ajudar a ir embora enquanto seus pulmões respiram e seu coração bate. Que você ligasse pro 180 e denunciasse esse homem que talvez não te mate agora, mas pode te matar depois. Que talvez não te mate fisicamente, mas vai extinguir toda sua alegria de viver. Que não vai te dar paz para dormir à noite, que vai te deixar com medo de dizer não quando você não quiser ou não puder fazer alguma coisa que ele pediu – porque você não sabe como ele vai reagir.

Eu sei que a cada mulher que morre no Brasil sem ser por alguma doença, 8 em 10 são mortas dentro de casa, sendo que 70% delas são mortas por um companheiro. Não por um assaltante. Não por um acidente de carro. Não pelo ataque de algum animal. Pelos homens que diziam amá-las. Todas elas diriam pra você voltar pra casa da sua mãe se não puder pagar um aluguel. Pedir ajuda pra sua prima, pra sua amiga. Para a polícia. Para qualquer pessoa sem ser esse homem que já te feriu anteriormente; e você pensou naquele dia ‘o que está acontecendo?’, e depois no segundo dia ‘não vai acontecer de novo!’

E aconteceu.

E depois de novo, e de novo. E ele não vai parar. Pare-o você antes que ele te pare; de viver; de respirar; de acreditar em si mesma; de dar colo aos seus filhos; de abraçar seus pais; de realizar aquele sonho que você mais sonhou.

Eu sinto muito que tudo isso tenha te acontecido. O feminicídio não destrói apenas mulheres. Ele destrói famílias inteiras. Filhos que crescem achando que apanhar e bater é uma forma saudável de relacionamento, e que amor significa aturar tudo custe o que custar, e que felicidade é o que alguém diz sobre você independente do que a pessoa faça com você; por você. Crianças que crescem em um lar abusivo e violento tem muito mais propensão a se tornarem abusivas e violentas; ou pacíficas diante da violência que pra elas se torna normal.

Não ensine ao seu filho que a raiva e fúria não podem ser controladas e os homens podem sair impunes e livres – felizes, conquistando o que queriam – através dela. Como essa criança vai agir quando ela for escolher alguém para passar a vida? Ela vai reproduzir esse comportamento. Seja o seu de quem apanhou, seja o dele, de quem te batia. Tire a criança daí logo, porque se ela morrer queimada, esfaqueada, espancada antes disso, ela não vai ter a chance de fazer escolhas diferentes e superar a violência a qual foi exposta.

O feminicídio também mata famílias inteiras, não só os filhos da mulher que apanha ou morre e ou assistem a tudo em silêncio ou apanham e morrem também. O feminicídio e o abuso doméstico também matam as mães e os pais dessas mulheres muito antes delas morrerem. Matam de tristeza desde quando o abuso começa, antes da morte física, antes dos socos e ataques. Matam de preocupação sobre se sua filha sobreviveu mais uma noite. Se os netos viveram para ir a escola na manhã seguinte.

A violência doméstica destrói amizades. O abusador geralmente tenta convencer a vítima a se isolar ao máximo de suas amigas, amigos, colegas de trabalho, primos, pais. Uma mulher sozinha é mais vulnerável a aceitar e acreditar o que o abusador – dissimulado e convincentes, lembra? – na verdade a ama e está fazendo aquilo porque é o melhor. Uma mulher sozinha e isolada também não vai ser tão facilmente notada, porque o abusador a ensina a se tornar invisível – se ela for notada; suas feridas; seus hematomas; sua tristeza e falta de brilho; a causa deles também será.

Por isso as fotos nas redes sociais são tão importantes, elas servem para convencer o pouco convívio social que não foi completamente tirado dessa mulher, de que ela está bem e ele o ama. Servem para convencer a mulher também. As flores também servem para isso. Os beijos também servem para isso. O jantar naquele restaurante legal no dia seguinte após o soco.

Eu me importou muito com você. Muito. A sua dor me dói. A dor dos seus pais me dói. A dor do seus filhos me dói. Eu sinto muito. Mas eu sei que ainda pode haver uma vida; e ela pode ser boa. E ninguém pode vivê-la ou reivindicá-la, ou te buscar do seu lar violento, se você não tomar essa decisão por si mesma. E eu não acho por nenhum segundo que seja fácil! Meu Deus, como é difícil o que você está passando! E como é difícil sair disso.

Mas não ser simples não significa que é impossível.

Eu espero que você sobreviva. Espero nunca encontrar seu nome no google ao lado das Michele, Tatianas, Marias, Elizas. Eu realmente espero. Mas mais do que isso, eu espero também que você saiba que você não está sozinha, que a culpa não é sua. E que há outras possibilidades. Uma outra vida.

Eu te amo muito. Tanto tanto! Você sou eu, você é minha avó, minha amiga, a prima da minha cunhada. Poderia ser eu. Tanto quanto você ainda pode ser elas; as mortas nas estatísticas.

Por favor, não seja. Peça ajuda.

Dora Figueiredo explicou AQUI NESSE VIDEO como ela entendeu que o namorado dela, com quem ela vivia, estava abusando dela e aquilo não deveria ser normal ou aceitado. Ju Wallauer explicou AQUI NESSE VIDEO o que é a violência doméstica e por que as vítimas não vão embora e o quê os filhos dessas mães que apanham sentem. A Jéssica explicou AQUI NESSE VIDEO como a história de amor dela se tornou um pesadelo. Jout Jout explicou AQUI NESSE VIDEO como saber o que é abuso quando não tem ninguém te batendo, mesmo se no fundinho você sentir que algo está errado e aquilo não é o que deveria ser.

Com todo amor que pode haver nesse mundo, com todo amor que não fere e não judia, não bate e não perdes as estribeiras, metendo a colher sempre que possível e enquanto é tempo,
cs